08 setembro 2010

Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul

O século XX assistiu ao conflito de um movimento contraditório nas várias encenações do discurso público dos direitos humanos. A efetivação dos direitos em políticas institucionais e nas normas do direito internacional caminhou conjuntamente ao uso indiscriminado da violência por parte dos estados. A humanidade conheceu um novo regime político, o totalitarismo, no qual a vida passou a ser o elemento determinante da ação de governo. O fenômeno totalitário constituiu o estado máximo de deformação da condição humana e o terror reduziu o indivíduo a um objeto, incapacitando-o para a ação política. É neste cenário que direitos como o da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade – sem extinção por tempo e sem limites nacionais – surgem nos debates sobre o dever de memória e justiça das novas democracias. O que há de biológico no humano configura-se como elemento fundamental da política e também das declarações de direitos humanos: o fato de sermos seres viventes aquém e além de qualquer cidadania.
As democracias nascidas nas últimas décadas surgem como herdeiras de regimes autoritários ou totalitários. Assim foi no Leste europeu após a queda dos governos pró-soviéticos, e igualmente com as poucas democracias substitutas do colonialismo tardio na Ásia e África. Na América Latina, ocorreu algo semelhante: o fim das ditaduras militares foi o momento originário da política democrática. A marca do novo regime político é a promessa de desfazer a injustiça do passado. Tanto o Brasil, após a ditadura, quanto a África do Sul, em seguida ao apartheid, são países que buscam construir a democracia dos direitos humanos.
No Brasil, tivemos uma longa ditadura instaurada com o golpe militar de 1964 e que, desde seu início, optou por reprimir brutalmente os opositores e a praticar violações aos direitos humanos. Milhares de pessoas tiveram seus direitos políticos e civis cassados, uma nova Constituição foi outorgada (1967) e a censura estabelecida. As instituições da democracia de apenas 19 anos (1945-1964) foram substituídas ou assimiladas pelo estado autoritário fundado sob a Doutrina de Segurança Nacional. O Preâmbulo do Ato Institucional número 1, assinado em 09 de abril de 1964, proclamava um regime de exceção legitimado em uma situação de emergência e dotado da força de lei revolucionária, “de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna”. O regime somente viria a terminar com o retorno dos civis em 1985, via Colégio Eleitoral. Em sua substituição, engendrou-se a atual democracia ordenada por uma das constituições (1988) avaliada como uma das mais avançadas em termos de direitos civis e sociais. Aparentemente, a transição conciliou o país no esforço de remoção do “entulho autoritário” e de esquecimento do trauma passado, estabeleceu o rodízio de partidos no governo e possibilitou o impeachment de um presidente eleito. Um regime discricionário e violento, com um modo autoritário de ação e de controle sobre a vida, daria lugar ao regime do consenso normativo de respeito à vida e de superação das injustiças do passado, tanto das violações da ditadura recente quanto as da catequização dos índios ou da escravidão. Seria o processo de consolidação das instituições democráticas.
Já na África do Sul, o regime de segregação racial começou ainda sob a colonização e se configurou como uma das piores experiências políticas da humanidade. Em 1948, o apartheid se transformou em princípio da constituição nacional e durante a década de 60 intensificou a separação territorial e de direitos civis entre brancos e negros. Começava a classificação da sociedade em white, black e colored (estes últimos asiáticos e indianos ou os nascidos da miscigenação entre os grupos anteriores). Após cerca de 40 anos de imposição violenta do regime de segregação racial, abrem-se as negociações visando ultrapassar os anos de violência política e opressão em busca de um processo de reconciliação. Um regime de separação violenta entre os homens foi substituído pela nova democracia, cuja constituição “estabeleceu um ponto histórico entre o passado de uma sociedade profundamente dividida, marcada pela luta, pelo conflito, sofrimentos não ditos e injustiça e um futuro fundado sobre o reconhecimento dos direitos dos homens, sobre a democracia e uma vida tranquila lado a lado” .
Os casos do Brasil e da África do Sul apresentam alguns aspectos similares, e, outros bem distintos, que nos permitem levantar uma série de questionamentos sobre o que é a ação política no presente, especialmente nas democracias com legado autoritário: qual o papel desempenhado pelo passado no tempo presente e, em especial, o papel da memória dos anos autoritários na ação política atual? É possível nos esquecermos dos horrores vividos e nos voltarmos para um futuro sem violência? Ou, a memória hiperbólica da tortura e da manipulação do corpo continua a habitar o cenário da democracia, fazendo parte do elo entre a rua e a casa, entre o político e o biológico?
Em uma sociedade carente de vários direitos (saúde, alimentação digna, educação de qualidade, água etc.) e repleta de vítimas das mais variadas violências por parte do Estado, a incerteza coloca em dúvida a própria ação política: o agir é um ato de transformação social ou torna-se apenas uma terapia para suprir carências básicas?
Incluída a vida no ordenamento jurídico-político por meio do estado de exceção, a presença do elemento biológico na política democrática dissemina a intromissão da vida no público e vice-versa. Esta é a força do projeto político da democracia e também o seu elemento violento: ao fazer da vida uma das grandes apostas do conflito social, cada corpo individual, tornado sujeito político, passa a ser incluído na conta do poder político, ainda que esta inclusão tenha ocorrido no Brasil sob o silêncio diante dos crimes do passado.
Não é possível pensar a violência da ditadura, sem assumirmos o compromisso de responder aos atos de violência e tortura dos dias atuais. E também o contrário: não eliminaremos as balas perdidas se não apurarmos a verdade dos anos de terror do estado de modo a ultrapassarmos certa cultura da impunidade. Pois a bala perdida é, como o silêncio e o esquecimento, o ato sem assinatura pelo qual ninguém se responsabiliza.

Trecho do capítuloEntre justiça e violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul, publicado no livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010. Edson Teles e Vladimir Safatle orgs.).

15 março 2010

Amnesties, pardons, and national reconciliations

The collective catastrophes imposed by regimes of authoritarian nature, be they of racist character like apartheid in South Africa, or be they of strictly political character like the military dictatorships in Argentina, Brazil and Chile, require daily efforts of reflection as well aspolitical action. These governments were characterized by the systematic violation of their citizens’ rights by brutal military and police institutions.(Worst of all.) The whole scheme was set up and maintained by the state which institutionalized the imprisonment, torture, disappearance 2) and murder of political opponents, as well as people without any link to, or participation in, resistance movements. Although in these countries, transitions to democracy have been negotiated, often with the dictators in their public offices, their societies see themselves confronted with the problem of how to reconcile the painful past with a democratic present, and still manage the conflicts that don’t end with a mere institutional passage from a dictatorial government to a democratic one. Human rights violations were not limited to the political institutions, but went beyond; they reached individuals, and they altered the subjectivity of those societies significantly. The question remains: why after more than three decades of the crimes, and even twenty years of democratic construction, does a considerable portion of the Brazilian society call for justice and for freedom of communication including the opening of the files recording the repression? What are the limits of the agreed-upon transitions? The attempts to answer these questions, although different in each country, show the importance of the fact that, even with every pressure for forgiveness, pardon, amnesty and national reconciliation, the investigation of the past is needed within the new democracies.

Negotiated Transitions

The authoritarian regimes of the twentieth century have demonstrated an outstanding element of modern time: the dissolving of memory. In societies that discard tradition and the past in favor of a future objective, memory doesn’t influence the process of legitimizing political power. If tradition and the events of the past do not seem to be the criteria of social stability anymore, then the model of the social contract, i.e., the consent of the majority becomes more important. Volitional capacity, i.e., the ability to make rational choices, doesn’t have a social history and its formulation seeks a natural process to be accomplished by institutional regulation and political action. The depreciation of memory in modern times is not due to a mere lapse, but to the rise of certain concepts and principles of action for political power, e.g., sovereignty, the general will, efficiency, etc.

For modern thought each person’s behavior, public opinion and institutions have become elements of a calculated political logic, transforming action into a process that follows predetermined stages. The technique of the action is the consequence of the specialization of politics, a procedure in which only those qualified by the technique are enabled to participate. In current democracies, the citizens have distanced themselves from the public dialogue, not only due to the lack of practicality (there is great difficulty in gathering all of the individuals at the same time), but because they have distanced themselves politically as well (the current indifference for political issues is more than obvious). They also lack a particular knowledge of the political process which is reserved for their representatives, the professional politicians.
In turn, although dictatorial regimes have usurped freedom of expression and imposed a severe control of information in the public realm, the imposition of forgetfulness was perpetrated by intervention in the most hidden spheres of society. Governments that violated human rights turned the manipulation of information into an efficient tool of social submission; because the inverse of this, i.e., the use of memory narrated freely, would become an inopportune instrument of resistance and condemnation of these regimes. Therefore, any attempt to return to the plots of the past would be rendered as an act of sabotage against the negotiated transitions.

(In)justice in the New Democracies

In certain countries, those responsible for the repression allege that they received a superior official’s orders (e.g., Argentina); in others, the most usual allegation is that only some uncontrolled or undisciplined sectors committed abuses (e.g., Brazil). These are used to excuse the charges. In most of the transitions to democracy, the unequal balance of power affected the negotiations of the amnesties. However, more and more the legality of such amnesties is put into doubt . Let us look at the Argentinean case, in which the Supreme Court cancelled Ley del Punto Final (Law of the Final Point) and Obediéncia Debida (Owed or Proper Obedience) in 2004. In Brazil, the Law of Amnesty excluded political and related crimes from legal prosecution, including the practice of torture, disappearances and political murder. The exiles returned to the country and clandestine militants and persecuted people received full rights, but in compensation those responsible for these crimes didn’t have to face any lawsuits. According to international law, in which the concept of “crimes against humanity”3) is used, crimes concerning human rights violations are considered separately from those crimes which benefited from amnesty laws.

Trecho de artigo publicado em HannahArendt.net, Reseach Notes 2/06.

09 março 2010

Is a world without torture possible?

This important issue can symbolize the struggles in favor of human rights in the present world. We saw in the last few days the new president of the United State, Barack Obama, declare that his country will not resort to torture any longer in the war against its enemies. Among his first actions in office should be the closing of the Guantanamo prison, where more than 200 people accused of “terrorism” are kept prisoners. There, the north-american State has openly had recourse to torture, backed by norms and laws approved by the Legislative power.
Given such dramatic picture for human rights, the global mass media exalts the measures taken against the violence in Guantanamo, without remembering that the same institutions that today are putting an end to this painful period, yesterday were giving norms to the violation of human dignity as the adequate way to treat suspects. However, we have to question if such measures are enough for us to have respectful relations among people, and, specially, between the national States and every individual that is in its territory.
To question the institutional policies for human rights is one of the great actions needed for a larger investment in the respect for life. And we are not talking only of the United States, but of most contemporary democracies. In Brazil, 2008 was intense in a similar debate. A share of brazilian society has been thinking about if it is possible to punish the torturers of the dictatorship or if we should forgive their crimes. Well, just like the new north-american president is applauded for his proposal, even though it doesn’t relate Guantanamo with a global policy of the State, also in Brazil we seem to talk on the issue of torture during the military regime without going deeper into the discussion on the same issue in democracy.
Recently the non-governmental organization Human Rights Watch listed Brazil, together with so many others worldwide, as one of the countries that has torture as a chronic problem. Here, the national culture has assimilated in such a way the permissiveness of the violation to every right to life and dignity that, presently, even the outlaw groups torture their victims, in a perverse perpetuation of the practice of the security institutions.
We, brazilians, have seen in the last few years a policy of closure of large centers for the detention of infractor adolescents (the buildings of the old FEBEM). Such measure, just like the closure of Guantanamo, sought to end the constant violations of human rights, in this case the rights of people who were still developing and without full citizenship. However, several human rights organizations, observant in the treatment given to the infractor adolescent, denounced that the practice of torture and violence still takes place.
What is the relation of the torturer of the dictatorship, the prison of Guantanamo the infractor adolescents and the dilemmas of human rights? It is the realization that for us to dream, wish, and build a world without torture it is necessary to make a frontal and fearless attack on the impunity of such crimes. Without punishing the torturers of yesterday, there is no possibility of ending with the torture of today; the simple closure of a notorious center of violations to humanity will not be enough it there is no punishment for those responsible (in general in the USA, in FEBEM in the brazilian State, the violators remain in public jobs).
Torture symbolizes a series of disrespects for the right to life, like the right to food, transport, education, health, a life without violence. It is important that we leave the WSF aware that therapeutic policies, those that try to diminish the violations, do have some value, but with clear limits. We have to go beyond that. We have to determine the responsibilities and create a culture of rights, we have to believe that a world without torture is possible!

É possível um mundo sem tortura?

Esta importante questão pode simbolizar as lutas em favor dos direitos humanos no mundo atual. Vimos nos últimos dias o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarar que seu país não irá mais usar o recurso da tortura na guerra contra seus inimigos. Entre suas primeiras ações deve estar o fechamento da prisão de Guantanamo, onde são mantidos mais de 200 presos acusados de “terrorismo”. Neste local, o Estado norte-americano utilizou abertamente, com respaldo em normas e leis aprovadas pelo Legislativo, a prática da tortura.
Diante de quadro tão dramático para os direitos humanos, a grande mídia mundial exalta as medidas contra as violências de Guantanamo, sem lembrar que as mesmas instituições que hoje encerram este período dolorido, ontem estavam normatizando a violação à dignidade humana como tratamento adequado a suspeitos. Contudo, é preciso questionar se tais medidas são suficientes para termos relações respeitosas entre as pessoas e, especialmente, entre os Estados nacionais e todo indivíduo que se encontra em seu território.
Colocar em dúvida as políticas institucionais para os direitos humanos é uma das grandes ações necessárias para um maior investimento no respeito à vida. E não nos referimos somente aos Estados Unidos, mas à maioria das democracias contemporâneas. No Brasil, o ano de 2008 foi intenso em debate semelhante. Parte da sociedade brasileira tem refletido sobre se é possível punir os torturadores da ditadura ou se devemos perdoar os seus crimes. Ora, assim como o novo presidente norte-americano é ovacionado por sua proposta, apesar de não relacionar Guantánamo com uma política global do Estado, também no Brasil parece que discutimos o tema da tortura do regime militar sem aprofundar a discussão sobre a mesma questão em democracia.
Recentemente, a organização não-governamental Human Rights Watch relacionou o Estado brasileiro, juntamente com outros tantos mundo afora, como um dos países que apresenta a tortura como um problema crônico. Aqui, a cultura nacional assimilou de tal maneira a permissividade à violação do direito à vida e à dignidade que, atualmente, mesmo os grupos mafiosos torturam suas vítimas, em uma perversa repetição da prática das instituições de segurança.
Nós, brasileiros, vimos nos últimos anos ser implantada uma política de fechamento dos grandes centros de detenção de adolescentes autores de ato infracional (as dependências da antiga FEBEM). A medida, tal como a proposta de fechamento de Guantanamo, visava encerrar as constantes violações aos direitos humanos, neste caso os direitos de pessoas ainda em desenvolvimento e sem a plena cidadania. Entretanto, várias entidades de direitos humanos, observadoras das mudanças no atendimento ao adolescente infrator, denunciaram que a prática de tortura e de violência se mantém.
Qual a relação entre o torturador da ditadura, a prisão de Guantanamo, os adolescentes infratores e os dilemas dos direitos humanos? É a constatação de que para sonharmos, desejarmos, construirmos um mundo sem tortura é necessário atacar de frente e sem medo a impunidade de tais crimes. Sem a punição aos torturadores de ontem, não há como pensar em acabar com a tortura de hoje; o simples fechamento de um notório centro de violações à humanidade será insuficiente se não houver a punição dos responsáveis (em geral, nos EUA, na FEBEM, no Estado brasileiro, os violadores permanecem em postos públicos).
A tortura simboliza uma série de desrespeitos do direito à vida, como o direito digno à alimentação, ao transporte, à educação, à saúde, a uma vida sem violência. É importante que estejamos conscientes de que políticas terapêuticas, que visam amenizar as violações, têm um valor, mas com limites claros. É preciso ir além. É necessário determinar as responsabilidades e criar uma cultura de direitos. É preciso acreditar que um mundo sem tortura é possível!

Artigo publicado na Agência Carta Maior, de 26 de janeiro de 2009.

03 março 2010

Tortura, impunidade e o investimento em direitos humanos

A questão sobre a tortura pode simbolizar as lutas em favor dos direitos humanos no mundo atual. Vimos nas últimas semanas o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarar que seu país não irá mais usar o recurso da tortura na guerra contra seus inimigos. Entre suas primeiras ações deve estar o fechamento da prisão de Guantanamo, onde são mantidos mais de 200 presos acusados de “terrorismo”. Neste local, o Estado norte-americano utilizou abertamente, com respaldo em normas e leis aprovadas pelo Legislativo, a prática da tortura.
Diante de quadro tão dramático para os direitos humanos, a grande mídia mundial exalta as medidas contra as violências de Guantanamo, sem lembrar que as mesmas instituições que hoje encerram este período dolorido, ontem estavam normatizando a violação à dignidade humana como tratamento adequado a suspeitos. E, devido a esta ambiguidade do Estado norte-americano, é preciso questionar se tais medidas são suficientes para termos relações respeitosas entre as pessoas e, especialmente, entre os Estados nacionais e com todos os indivíduos que se encontram em seu território.
Colocar em dúvida as políticas institucionais para os direitos humanos é uma das principais ações necessárias para um maior investimento no respeito à vida. E não nos referimos somente aos Estados Unidos, mas a maioria das democracias contemporâneas. No Brasil, os últimos anos o tema da tortura tem ensejado intenso debate. Parte da sociedade brasileira tem refletido sobre se é possível punir os torturadores da ditadura ou se devemos perdoar os seus crimes. Ora, assim como o novo presidente norte-americano é ovacionado por sua proposta, apesar de não relacionar Guantanamo com uma política global do Estado, também no Brasil parece que discutimos o tema da tortura do regime militar sem aprofundar a discussão sobre como tal prática criminosa mantém-se como herança autoritária na democracia.
Recentemente, a organização não-governamental Human Rights Watch relacionou o Estado brasileiro, juntamente com outros tantos mundo afora, como um dos países que apresenta a tortura como um problema crônico. Aqui, a cultura nacional assimilou de tal maneira a permissividade à violação do direito à vida e à dignidade que, atualmente, mesmo os grupos criminosos torturam suas vítimas, em uma perversa repetição da prática das instituições de segurança.
(...)
Contra a punição aos torturadores do passado há o argumento de que a retomada do assunto nos dias de hoje poderia causar algum dano às instituições democráticas. No entanto, de acordo com pesquisa realizada em 20 países - incluindo os países da América do Sul herdeiros de ditadura, como o Brasil -, pela cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, os países que julgaram e puniram os criminosos dos regimes autoritários sofrem menos abusos de direitos humanos em suas democracias. O estudo atesta que a impunidade em relação aos crimes do passado implica em incentivo a uma cultura de violência nos dias atuais. Este é um dos mais fortes motivos pelo qual assistimos frequentemente às notícias de tortura e desrespeito aos direitos em nossas delegacias, quartéis e dependências de instituições de segurança do Estado.
Entretanto, qual a relação entre o torturador da ditadura, a prisão de Guantanamo, os adolescentes infratores e os dilemas dos direitos humanos? É a constatação de que para sonharmos, desejarmos, construirmos um mundo sem tortura é necessário atacar de frente e sem medo a impunidade de tais crimes. Sem a punição aos torturadores de ontem, não há como pensar em acabar com a tortura de hoje; o simples fechamento de um notório centro de violações à humanidade será insuficiente se não houver a punição dos responsáveis (em geral, nos EUA, na FEBEM, no Estado brasileiro, os violadores permanecem em postos públicos).
A tortura simboliza uma série de desrespeitos do direito à vida, como o direito digno à alimentação, ao transporte, à educação, à saúde, a uma vida sem violência. É necessário determinar as responsabilidades e criar uma cultura de direitos. O fim da impunidade é a garantia para construirmos uma democracia respeitosa do direito à vida e à dignidade humana.

Trecho de artigo publicado na Revista ComCiência (Unicamp), n. 196, de março de 2009.

16 fevereiro 2010

Democracia e estado de exceção no Brasil

Em agosto de 1979, o Congresso Nacional brasileiro, ainda sob a vigência do regime militar, aprovou a Lei de Anistia, que em seu texto dizia: estão anistiados “todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Na época, após 15 anos de ditadura, os militares cederam às pressões da opinião pública e a oposição aceitou a anistia proposta pelo governo, ainda que parte dos presos e perseguidos políticos não tenha sido beneficiada. Simbolicamente, foram considerados, sob a decisão de anistiar os crimes “conexos” aos crimes políticos, anistiados os agentes da repressão. Contudo, podemos dizer que não teriam sido anistiados os torturadores, pois cometeram crimes sem relação com causas políticas e recebendo salário como funcionários do Estado. Os mortos e desaparecidos políticos não foram considerados e o paradeiro de seus restos mortais nunca foi esclarecido. Era o marco da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar – e mais do que isso, silenciar – o drama vivido diante da violência estatal.
O rompimento com o regime de exceção se efetuou por meio da transição de uma visão da política como enfrentamento e violência para um modelo do consenso, acordado em negociações entre os representantes políticos. O rito institucional do consenso pretendeu forçar uma unanimidade de vozes e condutas em torno da racionalização da política, difundindo significações mais ou menos homogêneas sobre os anos de repressão. A oposição entre a razão política pacificadora e as memórias doloridas da repressão obstrui a expressão pública da dor e reduz a memória às emoções, acabando por construir um novo espaço social justamente sobre a negação do passado. O caráter elitista e excludente presente na transição brasileira ficou explícito no processo de escolha do primeiro governo civil pós-ditadura, via colégio eleitoral.
Diante do Estado autoritário e da imposição do medo nos anos da ditadura, não bastava remover o chamado “entulho autoritário”, ou seja, era insuficiente modificar certas leis e estruturas de governo, reformar o sistema eleitoral e político, entre outras medidas institucionais. Eram ações limitadas para a criação de uma nova dimensão pública, o que excluía o “social” de participação no “jogo”.
A análise da transição brasileira aponta a intenção de dividir a sociedade em parcelas previamente identificadas. O estabelecimento de grupos determinados como partícipes do novo regime ocorre mediante a exclusão de outros segmentos, silenciados em suas demandas. Entretanto, se considerarmos que na democracia o povo que a compõe não corresponde a parcelas socialmente determináveis, então, a democracia seria a prática política de sujeitos que não coincidem com qualquer parte do Estado ou da sociedade em particular, mas sujeitos que se transformam e se sobrepõem às parcelas representadas nas instituições.

12 fevereiro 2010

O sobrinho de Rameau

Quem de nós abriria mão de seu modo de vida, seus desejos, sua liberdade, sua história? Tão difícil quanto é para cada um de nós desfazer do que nos define como sujeitos, igualmente é para o “senhor filósofo” e para Jean-François, o sobrinho de Rameau, contradizerem suas experiências reflexivas. Nos diálogos d’O sobrinho de Rameau ou Sátira segunda ocorre o conflito entre duas vozes dissonantes e discordantes. Passeando entre as idéias do sobrinho de Rameau (Ele) e do Filósofo (Eu), o leitor é convidado por Denis Diderot a julgar, segundo seus próprios valores, sobre os rumos das discussões. As falas, os gestos, as ações, os percursos de cada um dos personagens indicam uma rica relação dialógica que, desde o século XVIII até os nossos dias, seduzem o leitor a imaginar e criar um debate universal, logo, filosófico. No mundo contemporâneo, os dilemas da ética se apresentam pela dissolução dos costumes e das convições tradicionais e a melhor forma de nos orientarmos em uma vida sem o auxílio de valores prévios, segundo o autor, é por meio da reflexão livre e franca, sem a definição de uma verdade única. Tal como o conhecimento é fruto das circunstâncias, da ocasião e dos indivíduos, no materialismo de Diderot também as conclusões do pensamento produzem várias “verdades”. Por isto, é de boa medida para transpor nossos dilemas, bem como para os dos personagens, o recurso ao estilo irônico da sátira, de crítica rigorosa aos hábitos e à tradição e de apresentação do novo na forma de uma miscelânea de idéias.
Segundo Laurent Versini , O sobrinho de Rameau faz parte da produção de uma trilogia satírica. Daí o sub-título Sátira segunda, indicando a existência da Sátira primeira: sobre os caracteres e as palavras caráter, profissão, etc (1775). Esta primeira sátira origina-se em uma carta enviada por Diderot, ao seu editor e amigo Naigeon, configurada como passagem e esforço inicial para a segunda sátira. Temas como a condição natural dos homens e dos animais e suas analogias; a questão hobbesiana do homem lobo do homem; a morte; a preservação da espécie, as paixões e os desejos, constituem para o autor os “gritos da natureza”. Por meio de tais gritos os homens encontrariam suas profissões, indicando um determinismo naturalista na filosofia de Diderot.
O autor ainda teria escrito um curto diálogo de nome Lui et Moi (1762) que, de modo análogo à primeira sátira, comporia a gênese de O sobrinho de Rameau. O cinismo e a malandragem do personagem Rameau já despontava e, em mais uma caracterização aos moldes do conflito natural entre os homens, como em Hobbes, Diderot relaciona Lui, o vagabundo, a um predador sem escrúpulos, em uma sociedade onde presas e predadores têm de compartilhar o mesmo espaço. A terceira sátira de Diderot seria Jacques, o fatalista e seu amo (1773). Nesta obra a imoralidade volta à tona, com o autor construindo uma série de personagens e criando as mais diversas situações, colocando à prova as morais em conflito. Expondo as questões éticas em experiências das mais desonestas e imorais, os contos contidos neste livro apresentam a virtude como exceção, em um mundo onde o imoralismo é o destaque.
Imoralidade é também uma das questões centrais de O sobrinho de Rameau e talvez por este motivo, mas provavelmente também por outros, o livro somente tenha sido publicado após a morte do autor. Para que as desavenças éticas entre o “senhor filósofo” e o Sobrinho chegasse até nós, foi preciso que o livro vivesse um romance. Ironicamente, a primeira edição não foi na França. Traduzido por Goethe e lançado na Alemanha em 1805, a primeira língua a conhecer nossos personagens foi a alemã. Mesmo para estabelecer o texto final, o autor consumiu cerca de vinte anos. Desde sua primeira aparição em 1761, em diversas ocasiões e por quase todo o restante de sua vida, Diderot manuseou e alterou o texto dos diálogos até a versão final de 1782. Sua primeira publicação na França ocorreu em 1821, em uma retradução do texto de Goethe, o que desfigurou a versão original. Por quase cem anos as versões publicadas sofriam da desconfiança quanto à fidelidade ao original. Somente em 1891, o manuscrito original foi por acaso encontrado por Georges Monval, bibliotecário da Comédie-Française, em um dos sebos parisienses. Esta cópia tem sido, desde então, a fonte de todas as outras boas edições.
Assumindo a forma do bufão da Idade Média, nosso personagem mantém-se à margem da razão, mas pertencendo a ela, atuando junto às pessoas razoáveis e transmitindo certa irracionalidade, sem o que não se faz o discurso racional. Vivendo em uma gangorra, como as estações do ano controladas por Vertumno, o Sobrinho também se vê em situações extremadas, ora compartilhando a mesa dos ricos, ora como maltrapilho. O uso da epígrafe parece simbolizar o sujeito que nasceu determinado pelo devir da natureza e que, tal como o Sobrinho, o Filósofo e os leitores, transporta-se do vício à virtude, de um extremo moral a outro, enfrentando os dilemas “baixos” ou “nobres” do campo ético. A universalidade destes conflitos e debates mostram a magnitude da cultura e dos personagens do século das Luzes que, depois e durante cerca de duzentos e cinquenta anos, têm seduzido o leitor a participar dos diálogos. O sobrinho de Rameau nos apresenta, inteligentemente, o início da sociedade moderna, na qual a virtude tem de dividir sua importância com as liberdades individuais, demandando a discussão cotidiana de nossos valores éticos.

Trecho da "Introdução", de minha autoria, do livro "O sobrinho de Rameau", de Dennis Diderot (SP: Hedra, 2006).

Brasil e África do Sul: rupturas e continuidades nas transições políticas

Os regimes autoritários do hemisfério sul do planeta, nas últimas décadas do século XX, expuseram a matabilidade da vida, por vezes de modo mais sangrento, como na experiência racista do apartheid, ou mais cirúrgico, como no extermínio de considerável parcela de uma geração de “jovens heróis” nos anos de chumbo brasileiro. A vida permaneceu na esfera pública como exceção, ou seja, incluída na democracia por meio de uma exclusão: falamos dos mortos e desaparecidos políticos e dos corpos torturados. As relações entre a democracia e sua herança autoritária – os restos, interditos, fragmentos, mas também os instrumentos, procedimentos, valores – constituem, para a análise conceitual da política, um olhar aberto às novas realidades e demandas da cena pública contemporânea.
A volta às questões do passado autoritário não ocorre por mera reconstrução da memória factual da repressão, em uma simples presentificação do passado. A narrativa transforma o ocorrido em experiência e enriquece a reflexão do pensamento. Trata-se de realçar a “pulsão que se dirige ao que fomos e ao como fomos e ao que deixamos de ser e ao que e como seremos daqui em diante” (Sosnowski 1994: 15). Aquilo que menos conhecemos dos tempos de repressão, os detalhes e sentimentos, aparece em destaque na narrativa; é o plano do trivial, das pessoas comuns, aproximando-nos do incompreensível.
Tal como em um período de grave crise, quando se assiste ao desmoronamento das estruturas sociais e políticas tradicionais, também o luto social tem como característica a suspensão e a alteração das relações sociais. Nas ocasiões em que a sociedade se encontra em situação caótica ou vive sob o terror da falta de leis, seus critérios de legitimação são reavaliados e refeitos. Os momentos de luto coletivo, ou de transições de finalização de regimes violentos, correspondem a certas condições de anomia e caos, nas quais os sentimentos de dor e sofrimento são expressos por meio da cultura e suas transformações. E é justamente a perda de valores éticos e políticos uma das mais fortes heranças da impunidade sobre os crimes do passado.
Alguns países do hemisfério sul estabeleceram novas políticas com relação aos seus regimes autoritários ao procurar julgar os criminosos, mas nenhum deles ultrapassou o patamar máximo de julgamento de determinada parcela das responsabilidades, em ações limitadas diante da abrangência dos crimes. Dentre as novas experiências, destacamos as comissões de verdade encarregadas de reconstruir parte da história de violência, contribuindo com a elaboração da memória. Ao estabelecer a “verdade” dos fatos, “oferecendo um espaço público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou uma catarse partilhada” (Ricoeur 2000: 628). A narrativa da tragédia equivale à narrativa histórica, ao constituir-se na doxa do debate político e ao atingir um mínimo comum nas relações sociais, um salto qualitativo na produção de valores democráticos.

07 fevereiro 2010

Do que têm medo as Forças Armadas?

Desde o fim de 2009, o país tem discutido a proposta de criação de uma Comissão da Verdade visando apurar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar. A proposta, inserida em meio a outros tantos assuntos no Programa Nacional de Direitos Humanos, sofreu a pronta oposição das Forças Armadas, representadas pelo Ministro da Defesa Nelson Jobim, sob a alegação de que uma apuração legítima teria de incluir os crimes da esquerda armada. Dentre os objetivos referentes ao direito à memória e à verdade contidos no Plano foram as diretrizes 23 e 25 as que mais incitaram críticas. Na primeira, a 23, o texto dizia: “promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política”; na segunda diretriz, a 25, lê-se: “suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção”.
Após superficial e barulhenta discussão pública do assunto, o Presidente Lula assinou um novo decreto sobre o tema no qual suprime os termos “repressão política”. Deixa-se para o Congresso Nacional a tarefa de analisar e decidir sobre a proposta a ser enviada pelo grupo de trabalho instituído para esta função na forma de um projeto de lei a ser entregue ao legislativo no mês de abril. Desde a primeira redação, não havia referência direta à violência praticada pelo Estado brasileiro e, pior, já definia que o período a ser investigado seria aquele estabelecido pelo artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição. Ou seja: qualquer violação ocorrida desde 18 de setembro de 1946 até a promulgação da Constituição em 1988.
Mas o que significa a exclusão das palavras “repressão política” do decreto?

01 fevereiro 2010

O que nos faz agir?

O que nos faz agir? Como e onde podemos estabelecer o espaço do que é público? Qual o demos que irá agir na política? Será a cidadania apenas um modo de legitimar os governos por meio de eleições, mas incapaz de incluir o indivíduo na ação política? As questões iniciais deste texto não se esgotam nos aspectos gerais da teoria da ação política em Hannah Arendt. Não obstante, podemos dizer que tais indagações constituem pequenas provocações, para pensarmos e para agirmos na elaboração de uma sociedade com a marca do respeito à espontaneidade e à liberdade.
O interesse da filosofia política de Arendt é o mundo humano, o artifício que homens e mulheres constróem com o objetivo de reconciliarem suas existências no espaço comum, no qual se comunicam e interagem. Na impossibilidade de viver a política, ou seja, estar privado da presença e do diálogo com seus pares, tal como ocorria na Alemanha dos anos 30, Arendt reflete sobre a dissociação entre o que a tradição do pensamento ocidental elaborava, enquanto compreensão do mundo, e a realidade radical da experiência por ela vivida. A reflexão sobre como nossas ações políticas se dão, ou podem acontecer, influenciadas pelo mundo em comum partilhado com os outros, leva-nos a imaginar um percurso que possa subverter a velha submissão do pensamento a uma razão política dissociada da realidade.
O fenômeno da despolitização de nossas sociedades constitui-se, para a filósofa alemã Hannah Arendt, uma de suas principais preocupações, pois indica um rompimento do homem com sua capacidade de discernir critérios e referências de convivência que permita a cada um comunicar-se com todos os demais e agir em presença da pluralidade humana.

Trecho de edição da Revista Discutindo Filosofia, ano 2, n. 7, fevereiro de 2007.