09 março 2010

É possível um mundo sem tortura?

Esta importante questão pode simbolizar as lutas em favor dos direitos humanos no mundo atual. Vimos nos últimos dias o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarar que seu país não irá mais usar o recurso da tortura na guerra contra seus inimigos. Entre suas primeiras ações deve estar o fechamento da prisão de Guantanamo, onde são mantidos mais de 200 presos acusados de “terrorismo”. Neste local, o Estado norte-americano utilizou abertamente, com respaldo em normas e leis aprovadas pelo Legislativo, a prática da tortura.
Diante de quadro tão dramático para os direitos humanos, a grande mídia mundial exalta as medidas contra as violências de Guantanamo, sem lembrar que as mesmas instituições que hoje encerram este período dolorido, ontem estavam normatizando a violação à dignidade humana como tratamento adequado a suspeitos. Contudo, é preciso questionar se tais medidas são suficientes para termos relações respeitosas entre as pessoas e, especialmente, entre os Estados nacionais e todo indivíduo que se encontra em seu território.
Colocar em dúvida as políticas institucionais para os direitos humanos é uma das grandes ações necessárias para um maior investimento no respeito à vida. E não nos referimos somente aos Estados Unidos, mas à maioria das democracias contemporâneas. No Brasil, o ano de 2008 foi intenso em debate semelhante. Parte da sociedade brasileira tem refletido sobre se é possível punir os torturadores da ditadura ou se devemos perdoar os seus crimes. Ora, assim como o novo presidente norte-americano é ovacionado por sua proposta, apesar de não relacionar Guantánamo com uma política global do Estado, também no Brasil parece que discutimos o tema da tortura do regime militar sem aprofundar a discussão sobre a mesma questão em democracia.
Recentemente, a organização não-governamental Human Rights Watch relacionou o Estado brasileiro, juntamente com outros tantos mundo afora, como um dos países que apresenta a tortura como um problema crônico. Aqui, a cultura nacional assimilou de tal maneira a permissividade à violação do direito à vida e à dignidade que, atualmente, mesmo os grupos mafiosos torturam suas vítimas, em uma perversa repetição da prática das instituições de segurança.
Nós, brasileiros, vimos nos últimos anos ser implantada uma política de fechamento dos grandes centros de detenção de adolescentes autores de ato infracional (as dependências da antiga FEBEM). A medida, tal como a proposta de fechamento de Guantanamo, visava encerrar as constantes violações aos direitos humanos, neste caso os direitos de pessoas ainda em desenvolvimento e sem a plena cidadania. Entretanto, várias entidades de direitos humanos, observadoras das mudanças no atendimento ao adolescente infrator, denunciaram que a prática de tortura e de violência se mantém.
Qual a relação entre o torturador da ditadura, a prisão de Guantanamo, os adolescentes infratores e os dilemas dos direitos humanos? É a constatação de que para sonharmos, desejarmos, construirmos um mundo sem tortura é necessário atacar de frente e sem medo a impunidade de tais crimes. Sem a punição aos torturadores de ontem, não há como pensar em acabar com a tortura de hoje; o simples fechamento de um notório centro de violações à humanidade será insuficiente se não houver a punição dos responsáveis (em geral, nos EUA, na FEBEM, no Estado brasileiro, os violadores permanecem em postos públicos).
A tortura simboliza uma série de desrespeitos do direito à vida, como o direito digno à alimentação, ao transporte, à educação, à saúde, a uma vida sem violência. É importante que estejamos conscientes de que políticas terapêuticas, que visam amenizar as violações, têm um valor, mas com limites claros. É preciso ir além. É necessário determinar as responsabilidades e criar uma cultura de direitos. É preciso acreditar que um mundo sem tortura é possível!

Artigo publicado na Agência Carta Maior, de 26 de janeiro de 2009.