14 março 2012

Punir ou anistiar?

Punir ou anistiar? Esta é uma das questões que hoje nos são impostas pela herança da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Tais como as ditaduras na Argentina e no Chile, o governo militar brasileiro se caracterizou pela sistemática violação aos direitos de seus cidadãos por meio de um brutal aparato policial-militar. E pior: o esquema repressivo foi montado e mantido pelo Estado, que institucionalizou a prisão, a tortura, o desaparecimento e o assassinato de opositores. Hoje, o país se vê com o problema de como conciliar o passado doloroso com o presente, administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que passadas décadas dos crimes parcela considerável da sociedade demanda por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos? Ou eles podem ser anistiados em nome da reconciliação nacional?

Vimos, recentemente, dois movimentos contrários que apontam para a questão colocada. A apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei de Anistia foi válida para os “dois lados” (refere-se aos torturadores do Estado e àqueles que resistiram ao regime militar); e a recente decisão e encaminhamento do Ministério Público Federal de processo criminal por casos de desaparecimento político durante a ditadura.

Em maio de 2010, o STF decidiu negar o pedido de reinterpretação da Lei de Anistia de 1979 solicitado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Sob a alegação de que a lei havia sido fruto de um amplo acordo político de reconciliação do país, o Supremo silenciou-se sobre as graves violações dos direitos humanos durante a ditadura militar. Considerou que um Congresso sob o bipartidarismo, com senadores biônicos e sob leis de exceção, com mortes e prisões ocorrendo em todo território nacional, tinha legitimidade suficiente para representar os interesses da sociedade brasileira. Ainda que tivéssemos produzido um acordo de saída do regime ditatorial, qual é o empecilho de dizermos, hoje, sem a presença marcante e forte de forças golpistas e ilegais atuando abertamente, que vivemos em um país no qual a tortura não é aceita. É digno de uma democracia que a suprema instituição de justiça do país confirme anistia para funcionários públicos que torturaram, mataram e desapareceram com pessoas que pensavam de modo diferente ou agiam para resistir aos atos de violência? De fato, o STF, de acordo com o jogo de forças, suspende o ordenamento jurídico criando um estado de exceção dentro do Estado de Direito: a anistia aos torturadores.

Por outro lado, agora, no fim de março de 2012, quase dois anos após a decisão do STF, procuradores da República, reunidos no grupo de trabalho “Justiça de Transição”, decidiram entrar com ação criminal contra o coronel Sebastião Curió, comandante de forças de repressão à Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970. Curió foi apontado por diversas testemunhas como o responsável pela prisão, tortura e desaparecimento de cinco guerrilheiros capturados com vida. Parte das testemunhas é formada por pessoas torturados pelo próprio Curió, enquanto outros são militares que, em momentos diversos, assumiram oficialmente a prisão das vítimas sob comando do coronel. A Procuradoria se vale da lógica penal sobre o crime de sequestro (semelhante juridicamente ao desaparecimento), o qual não se encontra finalizado enquanto o corpo não é localizado (caindo a chancela de impunidade do STF para crimes cometidos até 1979).

O fato é que, independentemente da lei brasileira de 1979, o Brasil tem assinado desde 1946 acordos internacionais – com poder de lei para os países aderentes – que condenam os crimes contra a dignidade humana e os tornam imprescritíveis. Ou seja, a qualquer tempo, entre a data do crime e a abertura de investigações, o Brasil é obrigado a tomar providências em favor da punição dos responsáveis.

Há três condições para que um crime seja qualificado como de lesa humanidade: ter sido autorizado por agentes ou instituições do Estado, ser cometido por razões políticas, religiosas ou étnicas e atingir uma determinada parte da população civil. Durante a ditadura, o governo militar criou os departamentos de operações de informação (DOI-CODI), que funcionavam dentro de quartéis, e institucionalizou a tortura, o assassinato e o desaparecimento. Segundo o Ministério da Justiça, até o ano de 2011, cerca de 65 mil brasileiros entraram com pedidos de indenização por terem sofrido alguma violência durante o regime militar.

Além disso, o argumento de que a retomada do assunto nos dias de hoje poderia causar algum dano às instituições democráticas não nos convence. De acordo com pesquisa realizada em 20 países – incluindo os países da América do Sul herdeiros de ditadura, como o Brasil –, pela cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, os países que julgaram e puniram os criminosos dos regimes autoritários sofrem menos abusos de direitos humanos em suas democracias. O estudo atesta que a impunidade em relação aos crimes do passado implica incentivo a uma cultura de violência nos dias atuais. Não é à toa que assistimos frequentemente às notícias de tortura e desrespeito aos direitos em nossas delegacias, quartéis e dependências de segurança do Estado.

Enquanto os torturadores do passado recente não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência na democracia. É preciso que o governo nomeie e coloque para funcionar a Comissão Nacional da Verdade e que o judiciário assuma sua responsabilidade e tarefa e apure as circunstâncias dos crimes da ditadura e puna os responsáveis. Somente assim teremos como superar a presença da violência do passado e construir uma democracia estável e respeitosa.

Publicado no Blog da Boitempo, 14 de março de 2012.

02 março 2012

Democracia, segurança pública e a coragem para agir na política

Democracia com violência de Estado e especulação imobiliária: duas questões cruciais que nos chamam a atenção nos recentes episódios de ação da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para “restabelecer a ordem e a legalidade”, os quais se configuraram como violentos e sem eficácia do ponto de vista do interesse público.
A chamada Cracolândia (nome aparentemente cunhado pela grande mídia que, de certo modo significante, remete a um lugar de diversões, a estilo do nome do parque Disneylândia) e o bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, têm algo em comum além do fato de terem sido o palco das recentes violações de direitos sofridas por parte de uma parcela da população que parece não ter “direito a ter direitos” (nas palavras críticas de Hannah Arendt). Ambos os locais possuem em comum o fato de serem áreas de forte especulação imobiliária.
Os usuários de crack do centro de São Paulo encontram-se na região que o governo definiu para a execução do projeto “Nova Luz”, em referência ao discurso que assinala esta área como decadente, repleta de marginais, abandonada, suja... Neste projeto higienista, a Prefeitura pretende vender ao sistema privado o direito de desapropriar e estabelecer as prioridades da nova ocupação do bairro de acordo com interesses particulares, em detrimento do bem público. A área classificada pelos governos como abandonada sedia um dos maiores centros brasileiros de comércio de equipamentos eletrônicos e de informática. Quem já foi à Santa Efigênia, ou mesmo à rua 25 de março, constata, ao contrário, a decadência da presença do poder público, com ausência de serviços essenciais, inclusive os de saúde pública, como a limpeza das ruas. A ação repressiva da PM somente espalhou os chamados craqueiros para outros locais da região central, passando longe de ser solução, mas abrindo a possibilidade de formalizar o “progresso” imobiliário e comercial da região.
No bairro Pinheirinho, o conhecido especulador financeiro Naji Nahas detém, por meio de uma empresa falida, de sua propriedade, a área de moradia de quase 1.600 famílias. Pertencente a um casal de alemães mortos em 1969, não se sabe ao certo como o terreno, de posse do Estado por falta de herdeiros legais, acabou como propriedade de Nahas. Sabemos que o Estado, via decisão de uma juíza de São José dos Campos, confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou o despejo deste enorme contingente de pessoas, sem lhes garantir o direito à moradia, autorizando jogá-las na incerteza da ausência de um teto, inclusive com o uso de cassetetes, balas de borracha e gás de pimenta. Autorizado pelas leis, o governo optou pela violência em lugar de discutir uma alternativa de moradia ou mesmo de permanência no local.
Em várias ocasiões, na história da humanidade, pudemos ver a cena de pessoas amontoadas, crianças, idosos, doentes, sem seus pertences. Normalmente, fruto de algum tsunami ou catástrofe natural, ou mesmo de uma guerra. Em Pinheirinho, vimos a mesma cena, contudo, provocada pelo Judiciário e pelo governo do Estado, com o apoio do aparato repressivo da Polícia Militar. É chocante.
De fato, o poder público, aliado ao interesse privado da especulação, coloca-se favorável a uma ideia da expansão imobiliária como sinal de desenvolvimento. É histórico, em qualquer área urbana, que tais “reformas” levam a uma valorização financeira do metro quadrado, lançando a população pobre para além dos limites das atuais condições já precárias de moradia. Para que o projeto especulativo se concretize nestas áreas é necessário limpá-las da presença dos pobres. Leiam o comentário postado na página da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo:
“Após a limpeza, já era possível circular tanto a pé como de carro pelas alamedas Cleveland, Dino Bueno e Glete e a rua Helvétia, que ficam no entorno da praça Júlio Prestes. Locais que eram usados como esconderijos e moradia dos usuários de drogas foram desocupados e estabelecimentos comerciais funcionavam normalmente” (03.01.2012).
Experimentamos, nestes casos, uma clara demonstração de um projeto autoritário para as relações entre o poder público (podemos ler, inclusive, o Estado de Direito) e a população. Apesar de a Constituição brasileira tratar o direito à moradia como absoluto e o direito à propriedade como relativo à sua função social, o Estado, por meio de seus diversos poderes, em caso de conflito, tem atuado em favor do “desenvolvimento”. Para tanto, tem feito uso sistemático, especialmente em São Paulo, de uma Polícia Militar cada vez mais violenta (nunca esta instituição matou tanto na última década quanto no ano de 2011!) e repressiva (espanca estudantes da USP dentro do campus). Sua organização e disciplina, subordinadas ao comando do Exército, são regidas pelas mesmas regras impostas pela Constituição outorgada pela ditadura em 1969. Com a mudança do regime de exceção para a democracia, não houve a revisão ou reforma das instituições ligadas à segurança nacional e pública, mantendo nestes setores uma ideologia agressiva com a população não proprietária e garantindo a impunidade para as violências praticadas por seus agentes.
Tal situação evidencia o modelo que os setores patrimonialistas e da elite brasileira, com a anuência da classe média e o silêncio amedrontado de uma parcela da esquerda que perdeu seus compromissos de classe, escolheram para uma democracia limitada, muitas vezes de fachada com um verniz reluzente, outras vezes com características autoritárias.
Vivemos um momento grave de nossa vida social em que precisamos refletir sobre qual democracia queremos e, mais do que isto, agir com radicalidade para denunciar um modo autoritário e manipulador de se fazer política. Conflitos como os vividos neste mês de janeiro em São Paulo demandam daqueles que se sentem ofendidos por tamanha violência uma atitude corajosa de ruptura com o modelo conciliatório da transição “lenta, gradual e segura”, sob o qual construímos o nosso Estado de Direito.
Artigo originalmente publicado no Blog da Boitempo, fevereiro de 2012.