16 fevereiro 2010

Democracia e estado de exceção no Brasil

Em agosto de 1979, o Congresso Nacional brasileiro, ainda sob a vigência do regime militar, aprovou a Lei de Anistia, que em seu texto dizia: estão anistiados “todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Na época, após 15 anos de ditadura, os militares cederam às pressões da opinião pública e a oposição aceitou a anistia proposta pelo governo, ainda que parte dos presos e perseguidos políticos não tenha sido beneficiada. Simbolicamente, foram considerados, sob a decisão de anistiar os crimes “conexos” aos crimes políticos, anistiados os agentes da repressão. Contudo, podemos dizer que não teriam sido anistiados os torturadores, pois cometeram crimes sem relação com causas políticas e recebendo salário como funcionários do Estado. Os mortos e desaparecidos políticos não foram considerados e o paradeiro de seus restos mortais nunca foi esclarecido. Era o marco da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar – e mais do que isso, silenciar – o drama vivido diante da violência estatal.
O rompimento com o regime de exceção se efetuou por meio da transição de uma visão da política como enfrentamento e violência para um modelo do consenso, acordado em negociações entre os representantes políticos. O rito institucional do consenso pretendeu forçar uma unanimidade de vozes e condutas em torno da racionalização da política, difundindo significações mais ou menos homogêneas sobre os anos de repressão. A oposição entre a razão política pacificadora e as memórias doloridas da repressão obstrui a expressão pública da dor e reduz a memória às emoções, acabando por construir um novo espaço social justamente sobre a negação do passado. O caráter elitista e excludente presente na transição brasileira ficou explícito no processo de escolha do primeiro governo civil pós-ditadura, via colégio eleitoral.
Diante do Estado autoritário e da imposição do medo nos anos da ditadura, não bastava remover o chamado “entulho autoritário”, ou seja, era insuficiente modificar certas leis e estruturas de governo, reformar o sistema eleitoral e político, entre outras medidas institucionais. Eram ações limitadas para a criação de uma nova dimensão pública, o que excluía o “social” de participação no “jogo”.
A análise da transição brasileira aponta a intenção de dividir a sociedade em parcelas previamente identificadas. O estabelecimento de grupos determinados como partícipes do novo regime ocorre mediante a exclusão de outros segmentos, silenciados em suas demandas. Entretanto, se considerarmos que na democracia o povo que a compõe não corresponde a parcelas socialmente determináveis, então, a democracia seria a prática política de sujeitos que não coincidem com qualquer parte do Estado ou da sociedade em particular, mas sujeitos que se transformam e se sobrepõem às parcelas representadas nas instituições.

12 fevereiro 2010

O sobrinho de Rameau

Quem de nós abriria mão de seu modo de vida, seus desejos, sua liberdade, sua história? Tão difícil quanto é para cada um de nós desfazer do que nos define como sujeitos, igualmente é para o “senhor filósofo” e para Jean-François, o sobrinho de Rameau, contradizerem suas experiências reflexivas. Nos diálogos d’O sobrinho de Rameau ou Sátira segunda ocorre o conflito entre duas vozes dissonantes e discordantes. Passeando entre as idéias do sobrinho de Rameau (Ele) e do Filósofo (Eu), o leitor é convidado por Denis Diderot a julgar, segundo seus próprios valores, sobre os rumos das discussões. As falas, os gestos, as ações, os percursos de cada um dos personagens indicam uma rica relação dialógica que, desde o século XVIII até os nossos dias, seduzem o leitor a imaginar e criar um debate universal, logo, filosófico. No mundo contemporâneo, os dilemas da ética se apresentam pela dissolução dos costumes e das convições tradicionais e a melhor forma de nos orientarmos em uma vida sem o auxílio de valores prévios, segundo o autor, é por meio da reflexão livre e franca, sem a definição de uma verdade única. Tal como o conhecimento é fruto das circunstâncias, da ocasião e dos indivíduos, no materialismo de Diderot também as conclusões do pensamento produzem várias “verdades”. Por isto, é de boa medida para transpor nossos dilemas, bem como para os dos personagens, o recurso ao estilo irônico da sátira, de crítica rigorosa aos hábitos e à tradição e de apresentação do novo na forma de uma miscelânea de idéias.
Segundo Laurent Versini , O sobrinho de Rameau faz parte da produção de uma trilogia satírica. Daí o sub-título Sátira segunda, indicando a existência da Sátira primeira: sobre os caracteres e as palavras caráter, profissão, etc (1775). Esta primeira sátira origina-se em uma carta enviada por Diderot, ao seu editor e amigo Naigeon, configurada como passagem e esforço inicial para a segunda sátira. Temas como a condição natural dos homens e dos animais e suas analogias; a questão hobbesiana do homem lobo do homem; a morte; a preservação da espécie, as paixões e os desejos, constituem para o autor os “gritos da natureza”. Por meio de tais gritos os homens encontrariam suas profissões, indicando um determinismo naturalista na filosofia de Diderot.
O autor ainda teria escrito um curto diálogo de nome Lui et Moi (1762) que, de modo análogo à primeira sátira, comporia a gênese de O sobrinho de Rameau. O cinismo e a malandragem do personagem Rameau já despontava e, em mais uma caracterização aos moldes do conflito natural entre os homens, como em Hobbes, Diderot relaciona Lui, o vagabundo, a um predador sem escrúpulos, em uma sociedade onde presas e predadores têm de compartilhar o mesmo espaço. A terceira sátira de Diderot seria Jacques, o fatalista e seu amo (1773). Nesta obra a imoralidade volta à tona, com o autor construindo uma série de personagens e criando as mais diversas situações, colocando à prova as morais em conflito. Expondo as questões éticas em experiências das mais desonestas e imorais, os contos contidos neste livro apresentam a virtude como exceção, em um mundo onde o imoralismo é o destaque.
Imoralidade é também uma das questões centrais de O sobrinho de Rameau e talvez por este motivo, mas provavelmente também por outros, o livro somente tenha sido publicado após a morte do autor. Para que as desavenças éticas entre o “senhor filósofo” e o Sobrinho chegasse até nós, foi preciso que o livro vivesse um romance. Ironicamente, a primeira edição não foi na França. Traduzido por Goethe e lançado na Alemanha em 1805, a primeira língua a conhecer nossos personagens foi a alemã. Mesmo para estabelecer o texto final, o autor consumiu cerca de vinte anos. Desde sua primeira aparição em 1761, em diversas ocasiões e por quase todo o restante de sua vida, Diderot manuseou e alterou o texto dos diálogos até a versão final de 1782. Sua primeira publicação na França ocorreu em 1821, em uma retradução do texto de Goethe, o que desfigurou a versão original. Por quase cem anos as versões publicadas sofriam da desconfiança quanto à fidelidade ao original. Somente em 1891, o manuscrito original foi por acaso encontrado por Georges Monval, bibliotecário da Comédie-Française, em um dos sebos parisienses. Esta cópia tem sido, desde então, a fonte de todas as outras boas edições.
Assumindo a forma do bufão da Idade Média, nosso personagem mantém-se à margem da razão, mas pertencendo a ela, atuando junto às pessoas razoáveis e transmitindo certa irracionalidade, sem o que não se faz o discurso racional. Vivendo em uma gangorra, como as estações do ano controladas por Vertumno, o Sobrinho também se vê em situações extremadas, ora compartilhando a mesa dos ricos, ora como maltrapilho. O uso da epígrafe parece simbolizar o sujeito que nasceu determinado pelo devir da natureza e que, tal como o Sobrinho, o Filósofo e os leitores, transporta-se do vício à virtude, de um extremo moral a outro, enfrentando os dilemas “baixos” ou “nobres” do campo ético. A universalidade destes conflitos e debates mostram a magnitude da cultura e dos personagens do século das Luzes que, depois e durante cerca de duzentos e cinquenta anos, têm seduzido o leitor a participar dos diálogos. O sobrinho de Rameau nos apresenta, inteligentemente, o início da sociedade moderna, na qual a virtude tem de dividir sua importância com as liberdades individuais, demandando a discussão cotidiana de nossos valores éticos.

Trecho da "Introdução", de minha autoria, do livro "O sobrinho de Rameau", de Dennis Diderot (SP: Hedra, 2006).

Brasil e África do Sul: rupturas e continuidades nas transições políticas

Os regimes autoritários do hemisfério sul do planeta, nas últimas décadas do século XX, expuseram a matabilidade da vida, por vezes de modo mais sangrento, como na experiência racista do apartheid, ou mais cirúrgico, como no extermínio de considerável parcela de uma geração de “jovens heróis” nos anos de chumbo brasileiro. A vida permaneceu na esfera pública como exceção, ou seja, incluída na democracia por meio de uma exclusão: falamos dos mortos e desaparecidos políticos e dos corpos torturados. As relações entre a democracia e sua herança autoritária – os restos, interditos, fragmentos, mas também os instrumentos, procedimentos, valores – constituem, para a análise conceitual da política, um olhar aberto às novas realidades e demandas da cena pública contemporânea.
A volta às questões do passado autoritário não ocorre por mera reconstrução da memória factual da repressão, em uma simples presentificação do passado. A narrativa transforma o ocorrido em experiência e enriquece a reflexão do pensamento. Trata-se de realçar a “pulsão que se dirige ao que fomos e ao como fomos e ao que deixamos de ser e ao que e como seremos daqui em diante” (Sosnowski 1994: 15). Aquilo que menos conhecemos dos tempos de repressão, os detalhes e sentimentos, aparece em destaque na narrativa; é o plano do trivial, das pessoas comuns, aproximando-nos do incompreensível.
Tal como em um período de grave crise, quando se assiste ao desmoronamento das estruturas sociais e políticas tradicionais, também o luto social tem como característica a suspensão e a alteração das relações sociais. Nas ocasiões em que a sociedade se encontra em situação caótica ou vive sob o terror da falta de leis, seus critérios de legitimação são reavaliados e refeitos. Os momentos de luto coletivo, ou de transições de finalização de regimes violentos, correspondem a certas condições de anomia e caos, nas quais os sentimentos de dor e sofrimento são expressos por meio da cultura e suas transformações. E é justamente a perda de valores éticos e políticos uma das mais fortes heranças da impunidade sobre os crimes do passado.
Alguns países do hemisfério sul estabeleceram novas políticas com relação aos seus regimes autoritários ao procurar julgar os criminosos, mas nenhum deles ultrapassou o patamar máximo de julgamento de determinada parcela das responsabilidades, em ações limitadas diante da abrangência dos crimes. Dentre as novas experiências, destacamos as comissões de verdade encarregadas de reconstruir parte da história de violência, contribuindo com a elaboração da memória. Ao estabelecer a “verdade” dos fatos, “oferecendo um espaço público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou uma catarse partilhada” (Ricoeur 2000: 628). A narrativa da tragédia equivale à narrativa histórica, ao constituir-se na doxa do debate político e ao atingir um mínimo comum nas relações sociais, um salto qualitativo na produção de valores democráticos.

07 fevereiro 2010

Do que têm medo as Forças Armadas?

Desde o fim de 2009, o país tem discutido a proposta de criação de uma Comissão da Verdade visando apurar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar. A proposta, inserida em meio a outros tantos assuntos no Programa Nacional de Direitos Humanos, sofreu a pronta oposição das Forças Armadas, representadas pelo Ministro da Defesa Nelson Jobim, sob a alegação de que uma apuração legítima teria de incluir os crimes da esquerda armada. Dentre os objetivos referentes ao direito à memória e à verdade contidos no Plano foram as diretrizes 23 e 25 as que mais incitaram críticas. Na primeira, a 23, o texto dizia: “promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política”; na segunda diretriz, a 25, lê-se: “suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção”.
Após superficial e barulhenta discussão pública do assunto, o Presidente Lula assinou um novo decreto sobre o tema no qual suprime os termos “repressão política”. Deixa-se para o Congresso Nacional a tarefa de analisar e decidir sobre a proposta a ser enviada pelo grupo de trabalho instituído para esta função na forma de um projeto de lei a ser entregue ao legislativo no mês de abril. Desde a primeira redação, não havia referência direta à violência praticada pelo Estado brasileiro e, pior, já definia que o período a ser investigado seria aquele estabelecido pelo artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição. Ou seja: qualquer violação ocorrida desde 18 de setembro de 1946 até a promulgação da Constituição em 1988.
Mas o que significa a exclusão das palavras “repressão política” do decreto?

01 fevereiro 2010

O que nos faz agir?

O que nos faz agir? Como e onde podemos estabelecer o espaço do que é público? Qual o demos que irá agir na política? Será a cidadania apenas um modo de legitimar os governos por meio de eleições, mas incapaz de incluir o indivíduo na ação política? As questões iniciais deste texto não se esgotam nos aspectos gerais da teoria da ação política em Hannah Arendt. Não obstante, podemos dizer que tais indagações constituem pequenas provocações, para pensarmos e para agirmos na elaboração de uma sociedade com a marca do respeito à espontaneidade e à liberdade.
O interesse da filosofia política de Arendt é o mundo humano, o artifício que homens e mulheres constróem com o objetivo de reconciliarem suas existências no espaço comum, no qual se comunicam e interagem. Na impossibilidade de viver a política, ou seja, estar privado da presença e do diálogo com seus pares, tal como ocorria na Alemanha dos anos 30, Arendt reflete sobre a dissociação entre o que a tradição do pensamento ocidental elaborava, enquanto compreensão do mundo, e a realidade radical da experiência por ela vivida. A reflexão sobre como nossas ações políticas se dão, ou podem acontecer, influenciadas pelo mundo em comum partilhado com os outros, leva-nos a imaginar um percurso que possa subverter a velha submissão do pensamento a uma razão política dissociada da realidade.
O fenômeno da despolitização de nossas sociedades constitui-se, para a filósofa alemã Hannah Arendt, uma de suas principais preocupações, pois indica um rompimento do homem com sua capacidade de discernir critérios e referências de convivência que permita a cada um comunicar-se com todos os demais e agir em presença da pluralidade humana.

Trecho de edição da Revista Discutindo Filosofia, ano 2, n. 7, fevereiro de 2007.