08 setembro 2010

Estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul

O século XX assistiu ao conflito de um movimento contraditório nas várias encenações do discurso público dos direitos humanos. A efetivação dos direitos em políticas institucionais e nas normas do direito internacional caminhou conjuntamente ao uso indiscriminado da violência por parte dos estados. A humanidade conheceu um novo regime político, o totalitarismo, no qual a vida passou a ser o elemento determinante da ação de governo. O fenômeno totalitário constituiu o estado máximo de deformação da condição humana e o terror reduziu o indivíduo a um objeto, incapacitando-o para a ação política. É neste cenário que direitos como o da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade – sem extinção por tempo e sem limites nacionais – surgem nos debates sobre o dever de memória e justiça das novas democracias. O que há de biológico no humano configura-se como elemento fundamental da política e também das declarações de direitos humanos: o fato de sermos seres viventes aquém e além de qualquer cidadania.
As democracias nascidas nas últimas décadas surgem como herdeiras de regimes autoritários ou totalitários. Assim foi no Leste europeu após a queda dos governos pró-soviéticos, e igualmente com as poucas democracias substitutas do colonialismo tardio na Ásia e África. Na América Latina, ocorreu algo semelhante: o fim das ditaduras militares foi o momento originário da política democrática. A marca do novo regime político é a promessa de desfazer a injustiça do passado. Tanto o Brasil, após a ditadura, quanto a África do Sul, em seguida ao apartheid, são países que buscam construir a democracia dos direitos humanos.
No Brasil, tivemos uma longa ditadura instaurada com o golpe militar de 1964 e que, desde seu início, optou por reprimir brutalmente os opositores e a praticar violações aos direitos humanos. Milhares de pessoas tiveram seus direitos políticos e civis cassados, uma nova Constituição foi outorgada (1967) e a censura estabelecida. As instituições da democracia de apenas 19 anos (1945-1964) foram substituídas ou assimiladas pelo estado autoritário fundado sob a Doutrina de Segurança Nacional. O Preâmbulo do Ato Institucional número 1, assinado em 09 de abril de 1964, proclamava um regime de exceção legitimado em uma situação de emergência e dotado da força de lei revolucionária, “de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna”. O regime somente viria a terminar com o retorno dos civis em 1985, via Colégio Eleitoral. Em sua substituição, engendrou-se a atual democracia ordenada por uma das constituições (1988) avaliada como uma das mais avançadas em termos de direitos civis e sociais. Aparentemente, a transição conciliou o país no esforço de remoção do “entulho autoritário” e de esquecimento do trauma passado, estabeleceu o rodízio de partidos no governo e possibilitou o impeachment de um presidente eleito. Um regime discricionário e violento, com um modo autoritário de ação e de controle sobre a vida, daria lugar ao regime do consenso normativo de respeito à vida e de superação das injustiças do passado, tanto das violações da ditadura recente quanto as da catequização dos índios ou da escravidão. Seria o processo de consolidação das instituições democráticas.
Já na África do Sul, o regime de segregação racial começou ainda sob a colonização e se configurou como uma das piores experiências políticas da humanidade. Em 1948, o apartheid se transformou em princípio da constituição nacional e durante a década de 60 intensificou a separação territorial e de direitos civis entre brancos e negros. Começava a classificação da sociedade em white, black e colored (estes últimos asiáticos e indianos ou os nascidos da miscigenação entre os grupos anteriores). Após cerca de 40 anos de imposição violenta do regime de segregação racial, abrem-se as negociações visando ultrapassar os anos de violência política e opressão em busca de um processo de reconciliação. Um regime de separação violenta entre os homens foi substituído pela nova democracia, cuja constituição “estabeleceu um ponto histórico entre o passado de uma sociedade profundamente dividida, marcada pela luta, pelo conflito, sofrimentos não ditos e injustiça e um futuro fundado sobre o reconhecimento dos direitos dos homens, sobre a democracia e uma vida tranquila lado a lado” .
Os casos do Brasil e da África do Sul apresentam alguns aspectos similares, e, outros bem distintos, que nos permitem levantar uma série de questionamentos sobre o que é a ação política no presente, especialmente nas democracias com legado autoritário: qual o papel desempenhado pelo passado no tempo presente e, em especial, o papel da memória dos anos autoritários na ação política atual? É possível nos esquecermos dos horrores vividos e nos voltarmos para um futuro sem violência? Ou, a memória hiperbólica da tortura e da manipulação do corpo continua a habitar o cenário da democracia, fazendo parte do elo entre a rua e a casa, entre o político e o biológico?
Em uma sociedade carente de vários direitos (saúde, alimentação digna, educação de qualidade, água etc.) e repleta de vítimas das mais variadas violências por parte do Estado, a incerteza coloca em dúvida a própria ação política: o agir é um ato de transformação social ou torna-se apenas uma terapia para suprir carências básicas?
Incluída a vida no ordenamento jurídico-político por meio do estado de exceção, a presença do elemento biológico na política democrática dissemina a intromissão da vida no público e vice-versa. Esta é a força do projeto político da democracia e também o seu elemento violento: ao fazer da vida uma das grandes apostas do conflito social, cada corpo individual, tornado sujeito político, passa a ser incluído na conta do poder político, ainda que esta inclusão tenha ocorrido no Brasil sob o silêncio diante dos crimes do passado.
Não é possível pensar a violência da ditadura, sem assumirmos o compromisso de responder aos atos de violência e tortura dos dias atuais. E também o contrário: não eliminaremos as balas perdidas se não apurarmos a verdade dos anos de terror do estado de modo a ultrapassarmos certa cultura da impunidade. Pois a bala perdida é, como o silêncio e o esquecimento, o ato sem assinatura pelo qual ninguém se responsabiliza.

Trecho do capítuloEntre justiça e violência: estado de exceção nas democracias do Brasil e da África do Sul, publicado no livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010. Edson Teles e Vladimir Safatle orgs.).