21 setembro 2012

O tortuoso caminho da democracia

Dia 14 de agosto último, em decisão surpreendente, sob vários aspectos, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por meio de sua 1ª Câmara, confirmou a sentença emitida pelo juiz Gustavo Santini, de 2008, na qual havia declarado: “que entre eles [autores] e o réu Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação jurídica de responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais”. Em um dos testemunhos registrados no processo, pode-se ler: “disse que foi pessoalmente interrogado pelo réu, o qual o ameaçou, o espancou e lhe aplicou choques elétricos”. Portanto, após 40 anos dos crimes, confirma-se, por meio de uma declaração civil condenatória, a relação jurídica do coronel Ustra como comandante e autor das torturas sofridas pela família Teles nas dependências do DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão submetido ao Comando do II Exército. Tendo sido o principal oficial do órgão, entre os anos de 1970 e 1974, Ustra coordenou a instituição já responsabilizada pelo Estado brasileiro (via processos administrativos indenizatórios) como local de morte e desaparecimento de dezenas de opositores à ditadura e centro de tortura de outras centenas de pessoas. No dia 28 de dezembro de 1972, quando acompanhavam o dirigente do Partido Comunista do Brasil, Carlos Nicolau Danielli, Cesar Teles e Amelinha Teles (meus pais) foram presos. Já nos carros nos quais eram transportados para o DOI-CODI começou a série de sessões de tortura física contra os três. Enquanto os três passaram a noite nas salas de tortura, eu, minha irmã e minha tia viríamos a ser presos na manhã seguinte, em nossa residência. Tomo a liberdade de citar meu próprio depoimento coletado por um trabalho cuidadoso do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS: “Meus pais, Maria Amélia e Cesar, estiveram detidos no DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, juntamente com a Criméia, minha tia, e Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PCdoB. Criméia fora guerrilheira no Araguaia e os meus pais, no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, participavam da organização da estrutura do partido. Eu e minha irmã, Janaína, tínhamos à época 4 e, ela, 5 anos. “Em dezembro de 1972, alguns meses após o início da Guerrilha do Araguaia, os militares estavam procurando ostensivamente as pessoas que faziam parte da rede de apoio aos guerrilheiros. No dia 28, meus pais foram levar o Danielli ao ponto de encontro com outro dirigente do partido, na Vila Mariana, em São Paulo, porém o encontro já havia sido entregue para a polícia. Os três foram presos e já começaram a ser espancados no carro que os transportou. Foram levados para o DOI-CODI do II Exército, onde hoje funciona a 36ª Delegacia de Polícia. O local de repressão era comandado pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ele os recebeu com agressão física já no pátio do quartel. “Nós, eu e a minha irmã, ficamos em casa com minha tia. Não sabíamos o nome do meu pai, da minha mãe e da minha tia. Eles eram “pai”, “mãe”, “tia”, este nome genérico, por motivo de segurança. No dia seguinte à prisão, eu estava na sala assistindo Vila Sésamo e um casal tocou a campainha. Eram dois policiais à paisana. Naquele momento houve um bate-boca da minha tia com os policiais. Aparentemente eles tinham medo de nós. Apontaram metralhadoras para mim e para a minha irmã, nos levaram para um camburão, separado da Criméia. Colocaram-nos na parte de trás do camburão, presos, de modo coerente à condição de “filhos de terroristas”, como eles nos chamavam. “Fomos levados para o DOI-CODI, não sei se imediatamente, mas em algum momento fomos levados para lá. A cena de que me recordo é que estávamos no interior do prédio e ouvi a voz da minha mãe me chamando. Ao olhar para trás, após ter identificado e me alegrado pelo encontro com aquela voz tão familiar, não reconheci o seu rosto. Naquele momento, minha mãe já se encontrava cheia de hematomas esverdeados e roxos. Logo depois nós fomos levados para dentro da sala de tortura. Meu pai estava numa cadeira (“cadeira do dragão”), na qual a pessoa é amarrada e envolvida com fios elétricos desencapados por todo o corpo. “O Danielli, ao final do terceiro dia, foi assassinado naquelas dependências. Meus pais foram testemunhas das violências que resultariam em sua morte. Neste mesmo dia, lhes foi mostrado a manchete de um jornal de São Paulo, com a notícia da morte, em tiroteio, de um terrorista. Na matéria vinha estampada a foto de Carlos Nicolau Danielli, que acabara de ser assassinado em tortura. Os militares disseram algo como: ‘olha, nós damos a versão que queremos para estes fatos. Vocês também vão, logo mais, aparecer no jornal’”. A sentença de 2008, agora confirmada em segunda instância, realiza, por um lado, o reconhecimento público de que a família foi presa e torturada pelo oficial do Exército brasileiro, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Feito de extrema importância para a família e, especialmente, para a luta constante por justiça no país. Por outro lado, estes recentes acontecimentos históricos, expressos pelo ordenamento jurídico, mostram os graves limites nos quais se encontra bloqueada a democracia. Isto exige um olhar crítico e atento, com o objetivo de denunciar a ausência de esclarecimento e reconhecimento do modo destrutivo e violento com que a ditadura militar se inscreveu na cultura política e social do país. Refiro-me ao lento processo de inclusão dos crimes da ditadura na pauta nacional. O processo contra o coronel Ustra teve início em 2005. Mais de 30 anos após os fatos e cerca de três anos antes do governo Lula adotar o discurso, pela primeira vez desde a entrada de um presidente civil, da justiça de transição. Era a primeira vez que um agente da repressão seria individualmente processado. Desde os anos 90 em busca de um ato de justiça, a família tinha dificuldades em conseguir advogados que aceitassem processar na vara penal um torturador. Seja pelo desconforto nacional que isto poderia gerar, seja pela visão jurídica de que a Lei de Anistia impedia tal procedimento. Estudando o caso argentino, vislumbrou-se uma saída. Durante os anos 90, diante das leis de “obediência devida” e do “ponto final”, criadas pelo governo Menen para impedir os processos penais, os familiares de desaparecidos iniciaram os “juízos pela verdade”. Eram processos civis nos quais se solicitava a declaração de relação jurídica entre a vítima e o criminoso. Foram processos importantes para a penalização dos militares argentinos nos anos 2000. Em acordo com o advogado Fábio Konder Comparato, a família elaborou e deu entrada no pedido de reconhecimento da condição do coronel como torturador. Decidiu-se não pedir qualquer indenização, deixando claro o objetivo de reconstituição da dignidade ofendida na sala de tortura da ditadura e na ausência de punição da democracia. No atual processo, eu e minha irmã não fomos considerados vítimas do Ustra, por ausência ou insuficiência de provas, ainda que o próprio coronel tenha assumido em seu livro que nos levou ao DOI-CODI. No entanto, o fez com o intuito “humanitário” de conceder uma “visita” aos presos. Em nenhuma das audiências do atual nós, autores, pudemos narrar os fatos, o que foi substituído pelo relato escrito. Este modo limitado e lento de lidar com os crimes da ditadura, ainda que diminuto, ajuda a acelerar o trato do tema pelo Estado. Junto a esta iniciativa, soma-se a de outro grupo de familiares, os parentes de mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia. Neste outro processo, os familiares tiveram ganho definitivo de causa em 2006. Logo após, por descumprimento e vagarosidade na Justiça, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA aceitou o pedido de julgamento do Estado brasileiro. Reclamava-se a localização dos desaparecidos, a circunstância das mortes e a punição dos responsáveis. Foi neste contexto que o Estado adotou o discurso da justiça de transição, buscando um modo de lidar com um assunto que entrava cada vez mais em destaque nos contextos nacional e internacional. Discurso este que pode ser articulado para exigir a efetivação dos direitos das vítimas e pela não repetição do regime autoritário ou de rompimento com o seu legado. Contudo, o discurso da justiça de transição, na medida em que indica uma negociação para os atos de justiça, pode também servir a uma estratégia retórica para legitimar processos parciais de reconhecimento do direito à verdade e à memória e encobrir a impunidade acordada na transição. O Brasil parece fazer uso tanto do discurso manipulador, quanto do discurso emancipatório. É fato que até hoje o Estado não cumpriu a sentença da Justiça Federal e a da Corte da OEA sobre o caso Araguaia. A Lei de Anistia não foi reinterpretada, como designava a sentença, os corpos não foram localizados e as mortes e os seus responsáveis não foram esclarecidos. O cumprimento é de responsabilidade prioritária do Executivo, pelas responsabilidades constitucionais que tem, bem como pelo seu papel político na reconfiguração das leis de impunidade, a exemplo do ocorrido no Uruguai, Chile e Argentina. Nestes países, sem a ação determinada de seus governos, teria sido muito mais difícil iniciar os julgamentos. É diante deste contexto brevemente colocado que a cobrança por justiça diante dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade se faz legítima e apropriada. É claro que esta Comissão não é uma instância do ordenamento jurídico e nem mesmo teve em sua lei a autorização para obrigar alguém a depor ou indiciar um criminoso. Também não lhe foi concedida a prerrogativa de envio do relatório final ao STF e ao Ministério Público, como ocorreu com outras comissões, com o fito de iniciar os devidos processos criminais. Porém, os movimentos de direitos humanos e de familiares, para não dizer o conjunto da sociedade brasileira, têm o direito e a razão de exigir da Comissão o comprometimento de seus trabalhos com atos de justiça. A Comissão é instituição do Estado e, por força do modo como foi criada e de sua lei, encontra-se vinculada a uma lógica de governo que limita sua autonomia. A cobrança dos movimentos por justiça inscreve-se na luta política mais ampla por uma democracia efetiva na qual a impunidade seja condenada, não somente por estratégias retóricas, mas por atos concretos de transformação da condição atual. Publicado no Blog da Boitempo em 16 de agosto de 2012.

21 junho 2012

O silêncio como uma política de memória

Nesta semana, ocorreu um momento significante para a memória sobre o período ditatorial e o reconhecimento do impacto político e social da herança autoritária que persiste na atual democracia. Trata-se do encontro dos familiares de mortos e desaparecidos políticos e demais perseguidos pela ditadura com a Comissão Nacional da Verdade, em São Paulo, no dia 11 de junho. O evento marcou a possibilidade de uma nova abordagem da responsabilização do Estado sobre os crimes da ditadura e uma nova compreensão da herança autoritária assumida pela democracia. Na reunião da Comissão Nacional da Verdade com os familiares, como foi nomeada, estiveram presentes cinco dos sete membros da Comissão (Gilson Dipp, José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha) e cerca de 40 parentes de vítimas e perseguidos da ditadura. Não faço aqui um relato da reunião, a qual me pareceu um passo importante de participação dos familiares na pauta dos trabalhos da Comissão, mas chamo a atenção para alguns aspectos observados que evidenciam as relações políticas e o grau de nossa democracia. A reunião transcorreu em um clima de respeito e também de cobrança. Os familiares, por um lado indicaram a esperança de uma nova postura do Estado com a criação da Comissão e, por outro, demonstraram a angústia e a ausência de esferas públicas nas quais pudessem, nestes 25 anos de democracia, expressar suas demandas e construir as narrativas sobre a experiência vivida. Houve, depois da entrada de civis no governo e da promulgação da Constituição em 1988 somente dois momentos nos quais o Estado brasileiro reconheceu a responsabilidade pelas graves violações de direitos: o primeiro ocorreu com a Lei 9.140, de 1995, de reconhecimento dos mortos e desaparecidos políticos, autorizando a indenização de seus familiares. Os parentes das vítimas tiveram que entrar com os pedidos de reconhecimento junto ao Executivo e, indicando a limitação do reconhecimento de sua condição, tiveram que provar ao Estado que seus entes foram assassinados ou desaparecidos por aquele mesmo Estado, o qual tem e deveria acessar em seus arquivos as provas dos fatos. Ao contrário, o ônus coube às vítimas. Os familiares dos desaparecidos, ao final do processo, além da indenização, recebiam um atestado de óbito sem a causa da morte e a data certa do ocorrido. De certo modo, ao reconhecer a responsabilidade, o Estado desaparecia mais um pouco o corpo do opositor da ditadura. Sem a apuração das circunstâncias do desaparecimento, a localização do corpo e a responsabilização pelo crime, a história do desaparecimento permanece velada e esquecida nos arquivos mais escondidos das Forças Armadas. No segundo momento de reconhecimento da responsabilidade pelos crimes da ditadura, o Estado brasileiro criou, em 2002, a Comissão de Anistia aos perseguidos políticos. Nascida com a interpretação de que a indenização seria concedida com base nos danos trabalhistas, a responsabilização seguiu uma lógica de discriminação social e de classe. Um dia preso nas dependências da repressão política apresentava, segundo a Lei, um valor indenizatório diferenciado para um juiz e outro para um operário, mesmo tendo sofrido as mesmas violações. Demonstrando ambiguidade e vacilo na política de memória do Estado, a Lei de criação da Comissão de Anistia não utilizou o termo “vítima” para se referir aos que sofreram perseguição política, indicando, nos parece, uma limitação na compreensão de como um Estado democrático deve lidar com as violações de direitos. Sem dúvida que estas duas leis de reconhecimento e responsabilização do Estado, apesar de seus limites, significaram avanço, inclusive para as vítimas, evidenciado no apoio e em algum modo de participação dos movimentos de familiares em ambas as instituições. Contudo, e este é o fenômeno que nos interessa nesta análise, tais atos se inscreveram tanto como políticas de memória, quanto em uma política de silêncio. Em ambas, na Comissão de Mortos e Desaparecidos e na Comissão de Anistia, foram raros os momentos em que as vítimas puderam construir narrativas sobre a violência sofrida e o modo como compreendiam a história do país. Normalmente, a relação das vítimas se deu por meio de frios papéis de encaminhamento dos pedidos nos quais se inscreviam tentativas de escritas daquilo que não podia ou não devia ser narrado em público. A negação às falas dos que resistiram à ditadura e à fala de seus familiares, que resistiram à imposição do silêncio na democracia, ficou explícita na construção simbólica de que houve no país uma guerra entre dois lados “demoníacos”. Construção negacionista da história de resistência legítima a um estado ditatorial que voltou a ser veiculada no início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Na reunião dos familiares com a Comissão da Verdade no último dia 11 de junho, o discurso de negação da repressão política contra oposicionistas foi categoricamente recusado pelos comissionários, representando positiva sinalização no sentido de desvelar a história do aparato repressivo da ditadura. Apesar do pouco tempo para a escuta da narrativa dos familiares, o que deverá ser repensado para os próximos encontros, houve espaço para o depoimento de uma jovem, neta de Heleny Guariba (desaparecida desde 1971), de extrema significância para pensarmos qual verdade precisa ser procurada pelos trabalhos da Comissão. Tomo a liberdade de citar parte do conteúdo e com ela encerro este artigo, diante da certeza de que a nova geração, a dos esculachos, expressa o desejo de rompimento do silêncio imposto por uma transição negociada e mantida com pouca escuta (por vezes nenhuma) dos movimentos sociais: “(…) o Estado não tem o poder de estabelecer ou restituir minha paz familiar, não tem o poder de me reconciliar com aqueles que me oprimem e oprimem a sociedade, aqueles que reprimiram a possibilidade de um avanço social dando o Golpe de 64 e que reprimiram e trucidaram a resistência à ditadura. (…) o Estado não pode me dar a memória da avó que eu não tive, nem ao meu pai e ao meu tio a memória da mãe que o Estado tirou a vida tão cedo, nem as famílias que perdem seus pais e filhos diariamente na guerra do Estado contra a pobreza, cujo pretexto, no presente momento, é a guerra, há tanto perdida, contra o tráfico de drogas. (…) minha necessidade não é a de saber nas profundezas de que mares o corpo de minha avó foi parar, minha necessidade de familiar de uma desaparecida política e de cidadã é que o povo saiba o que aconteceu, por que continua acontecendo, quem continua no poder, que sistema tem se repetido e o que significa a impunidade”. Publicado no Blog da Boitempo, em 14 de junho de 2012.

23 abril 2012

“Se não há Justiça, há escracho”

Nas últimas semanas ocorreram movimentos de escracho dos torturadores da ditadura brasileira em várias cidades brasileiras. Estas ações têm a característica de trazerem um elemento novo à luta pela justiça em relação às violações de direitos durante os governos militares: a organização e a presença das novas gerações. Alguns são familiares de vítimas da ditadura; outros, militantes de movimentos sociais ou grupos de esquerda; e, a maioria, pessoas que não viveram aqueles anos, mas que têm a consciência de que o Brasil precisa fazer justiça para que possamos viver com o mínimo de dignidade. Os escrachos são manifestações na porta de locais de moradia ou trabalho de torturadores ou agentes da repressão já amplamente denunciados nos relatórios de familiares de mortos e desaparecidos, mas cujas histórias são pouco conhecidas pela sociedade. E esta tem sido a principal função dos escrachos, dar publicidade aos crimes criando as possibilidades para a reconstrução da memória e para a punição dos responsáveis. Este tipo de manifestação começou na Argentina, por volta do ano de 1995, organizada pelo movimento HIJOS (sigla para o nome “Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio”, integrado essencialmente por filhos ou jovens parentes de mortos e desaparecidos políticos) para denunciar torturadores que haviam sido indultados durante o governo do presidente Carlos Menem. O alvo era o contexto de impunidade e visava a mobilização da opinião pública, bem como a condenação moral dos agentes da repressão. Hoje, a Argentina tem 237 condenados e 778 processados. Houve uma combinação de movimentos sociais em luta, com ações judiciais internas e na Corte da OEA e a decisão política do governo dos Kirchner em apoiar, via ação da bancada do governo no Congresso Nacional, as mudanças necessárias na lei para que o Judiciário se obrigasse a julgar os crimes da ditadura. Com o lema “Se não há justiça, há esculacho popular”, dezenas de manifestantes estiveram na porta da casa e no bairro do ex-diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Harry Shibata, quem assinou diversos laudos de morte de oposicionistas ao regime militar corroborando falsas versões, como a de suicídio do jornalista Vladimir Herzog. Este movimento é uma lição de democracia para o país. Faz bem pouco tempo ouvíamos argumentos de que o limite do Estado brasileiro em conceder somente reparação, sem atos de justiça ou localização de corpos dos desaparecidos políticos, devia-se às pressões de setores conservadores e perigosos dentro do cenário político brasileiro. Este argumento do “medo”, fantasmagórico de um perigo invisível, forçaria o governo a adotar uma política do possível. Assim, a luta pela justiça e pela memória limitava-se, no Brasil, ao discurso do direito à memória e à verdade. Foi dentro desta lógica que o Congresso Nacional aprovou o tímido projeto do governo de criação da Comissão da Verdade. Contudo, em vez de se configurar como uma ação somente de resgate histórico do passado, as movimentações para a criação da Comissão da Verdade colocaram em evidência uma das maiores chagas de nossa democracia: a impunidade. Temos uma boa chance de mudar o cenário cotidiano de nosso Estado de Direito. Anunciar uma lista de nomes qualificados para a Comissão da Verdade e indicar à base governista o apreço pelo projeto da deputada Luiza Erundina de reinterpretação da Lei da Anistia pode nos levar a um país diferente. Por outro lado, o ensinamento democrático dos movimentos de escracho é que o que devemos temer é a ausência de Justiça e a falta de coragem de agir em defesa de uma democracia não tutelada por “forças invisíveis”, sempre prontas a reagir quando os movimentos sociais se mobilizam. Isto nos mostra que a ação política não se decide somente em Brasília ou nas decisões partidárias, mas tem um forte elemento na organização dos movimentos sociais. Publicado no Blog da Boitempo, dia 19 de abril de 2012

14 março 2012

Punir ou anistiar?

Punir ou anistiar? Esta é uma das questões que hoje nos são impostas pela herança da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Tais como as ditaduras na Argentina e no Chile, o governo militar brasileiro se caracterizou pela sistemática violação aos direitos de seus cidadãos por meio de um brutal aparato policial-militar. E pior: o esquema repressivo foi montado e mantido pelo Estado, que institucionalizou a prisão, a tortura, o desaparecimento e o assassinato de opositores. Hoje, o país se vê com o problema de como conciliar o passado doloroso com o presente, administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que passadas décadas dos crimes parcela considerável da sociedade demanda por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos? Ou eles podem ser anistiados em nome da reconciliação nacional?

Vimos, recentemente, dois movimentos contrários que apontam para a questão colocada. A apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a Lei de Anistia foi válida para os “dois lados” (refere-se aos torturadores do Estado e àqueles que resistiram ao regime militar); e a recente decisão e encaminhamento do Ministério Público Federal de processo criminal por casos de desaparecimento político durante a ditadura.

Em maio de 2010, o STF decidiu negar o pedido de reinterpretação da Lei de Anistia de 1979 solicitado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Sob a alegação de que a lei havia sido fruto de um amplo acordo político de reconciliação do país, o Supremo silenciou-se sobre as graves violações dos direitos humanos durante a ditadura militar. Considerou que um Congresso sob o bipartidarismo, com senadores biônicos e sob leis de exceção, com mortes e prisões ocorrendo em todo território nacional, tinha legitimidade suficiente para representar os interesses da sociedade brasileira. Ainda que tivéssemos produzido um acordo de saída do regime ditatorial, qual é o empecilho de dizermos, hoje, sem a presença marcante e forte de forças golpistas e ilegais atuando abertamente, que vivemos em um país no qual a tortura não é aceita. É digno de uma democracia que a suprema instituição de justiça do país confirme anistia para funcionários públicos que torturaram, mataram e desapareceram com pessoas que pensavam de modo diferente ou agiam para resistir aos atos de violência? De fato, o STF, de acordo com o jogo de forças, suspende o ordenamento jurídico criando um estado de exceção dentro do Estado de Direito: a anistia aos torturadores.

Por outro lado, agora, no fim de março de 2012, quase dois anos após a decisão do STF, procuradores da República, reunidos no grupo de trabalho “Justiça de Transição”, decidiram entrar com ação criminal contra o coronel Sebastião Curió, comandante de forças de repressão à Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970. Curió foi apontado por diversas testemunhas como o responsável pela prisão, tortura e desaparecimento de cinco guerrilheiros capturados com vida. Parte das testemunhas é formada por pessoas torturados pelo próprio Curió, enquanto outros são militares que, em momentos diversos, assumiram oficialmente a prisão das vítimas sob comando do coronel. A Procuradoria se vale da lógica penal sobre o crime de sequestro (semelhante juridicamente ao desaparecimento), o qual não se encontra finalizado enquanto o corpo não é localizado (caindo a chancela de impunidade do STF para crimes cometidos até 1979).

O fato é que, independentemente da lei brasileira de 1979, o Brasil tem assinado desde 1946 acordos internacionais – com poder de lei para os países aderentes – que condenam os crimes contra a dignidade humana e os tornam imprescritíveis. Ou seja, a qualquer tempo, entre a data do crime e a abertura de investigações, o Brasil é obrigado a tomar providências em favor da punição dos responsáveis.

Há três condições para que um crime seja qualificado como de lesa humanidade: ter sido autorizado por agentes ou instituições do Estado, ser cometido por razões políticas, religiosas ou étnicas e atingir uma determinada parte da população civil. Durante a ditadura, o governo militar criou os departamentos de operações de informação (DOI-CODI), que funcionavam dentro de quartéis, e institucionalizou a tortura, o assassinato e o desaparecimento. Segundo o Ministério da Justiça, até o ano de 2011, cerca de 65 mil brasileiros entraram com pedidos de indenização por terem sofrido alguma violência durante o regime militar.

Além disso, o argumento de que a retomada do assunto nos dias de hoje poderia causar algum dano às instituições democráticas não nos convence. De acordo com pesquisa realizada em 20 países – incluindo os países da América do Sul herdeiros de ditadura, como o Brasil –, pela cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, os países que julgaram e puniram os criminosos dos regimes autoritários sofrem menos abusos de direitos humanos em suas democracias. O estudo atesta que a impunidade em relação aos crimes do passado implica incentivo a uma cultura de violência nos dias atuais. Não é à toa que assistimos frequentemente às notícias de tortura e desrespeito aos direitos em nossas delegacias, quartéis e dependências de segurança do Estado.

Enquanto os torturadores do passado recente não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência na democracia. É preciso que o governo nomeie e coloque para funcionar a Comissão Nacional da Verdade e que o judiciário assuma sua responsabilidade e tarefa e apure as circunstâncias dos crimes da ditadura e puna os responsáveis. Somente assim teremos como superar a presença da violência do passado e construir uma democracia estável e respeitosa.

Publicado no Blog da Boitempo, 14 de março de 2012.

02 março 2012

Democracia, segurança pública e a coragem para agir na política

Democracia com violência de Estado e especulação imobiliária: duas questões cruciais que nos chamam a atenção nos recentes episódios de ação da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para “restabelecer a ordem e a legalidade”, os quais se configuraram como violentos e sem eficácia do ponto de vista do interesse público.
A chamada Cracolândia (nome aparentemente cunhado pela grande mídia que, de certo modo significante, remete a um lugar de diversões, a estilo do nome do parque Disneylândia) e o bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, têm algo em comum além do fato de terem sido o palco das recentes violações de direitos sofridas por parte de uma parcela da população que parece não ter “direito a ter direitos” (nas palavras críticas de Hannah Arendt). Ambos os locais possuem em comum o fato de serem áreas de forte especulação imobiliária.
Os usuários de crack do centro de São Paulo encontram-se na região que o governo definiu para a execução do projeto “Nova Luz”, em referência ao discurso que assinala esta área como decadente, repleta de marginais, abandonada, suja... Neste projeto higienista, a Prefeitura pretende vender ao sistema privado o direito de desapropriar e estabelecer as prioridades da nova ocupação do bairro de acordo com interesses particulares, em detrimento do bem público. A área classificada pelos governos como abandonada sedia um dos maiores centros brasileiros de comércio de equipamentos eletrônicos e de informática. Quem já foi à Santa Efigênia, ou mesmo à rua 25 de março, constata, ao contrário, a decadência da presença do poder público, com ausência de serviços essenciais, inclusive os de saúde pública, como a limpeza das ruas. A ação repressiva da PM somente espalhou os chamados craqueiros para outros locais da região central, passando longe de ser solução, mas abrindo a possibilidade de formalizar o “progresso” imobiliário e comercial da região.
No bairro Pinheirinho, o conhecido especulador financeiro Naji Nahas detém, por meio de uma empresa falida, de sua propriedade, a área de moradia de quase 1.600 famílias. Pertencente a um casal de alemães mortos em 1969, não se sabe ao certo como o terreno, de posse do Estado por falta de herdeiros legais, acabou como propriedade de Nahas. Sabemos que o Estado, via decisão de uma juíza de São José dos Campos, confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou o despejo deste enorme contingente de pessoas, sem lhes garantir o direito à moradia, autorizando jogá-las na incerteza da ausência de um teto, inclusive com o uso de cassetetes, balas de borracha e gás de pimenta. Autorizado pelas leis, o governo optou pela violência em lugar de discutir uma alternativa de moradia ou mesmo de permanência no local.
Em várias ocasiões, na história da humanidade, pudemos ver a cena de pessoas amontoadas, crianças, idosos, doentes, sem seus pertences. Normalmente, fruto de algum tsunami ou catástrofe natural, ou mesmo de uma guerra. Em Pinheirinho, vimos a mesma cena, contudo, provocada pelo Judiciário e pelo governo do Estado, com o apoio do aparato repressivo da Polícia Militar. É chocante.
De fato, o poder público, aliado ao interesse privado da especulação, coloca-se favorável a uma ideia da expansão imobiliária como sinal de desenvolvimento. É histórico, em qualquer área urbana, que tais “reformas” levam a uma valorização financeira do metro quadrado, lançando a população pobre para além dos limites das atuais condições já precárias de moradia. Para que o projeto especulativo se concretize nestas áreas é necessário limpá-las da presença dos pobres. Leiam o comentário postado na página da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo:
“Após a limpeza, já era possível circular tanto a pé como de carro pelas alamedas Cleveland, Dino Bueno e Glete e a rua Helvétia, que ficam no entorno da praça Júlio Prestes. Locais que eram usados como esconderijos e moradia dos usuários de drogas foram desocupados e estabelecimentos comerciais funcionavam normalmente” (03.01.2012).
Experimentamos, nestes casos, uma clara demonstração de um projeto autoritário para as relações entre o poder público (podemos ler, inclusive, o Estado de Direito) e a população. Apesar de a Constituição brasileira tratar o direito à moradia como absoluto e o direito à propriedade como relativo à sua função social, o Estado, por meio de seus diversos poderes, em caso de conflito, tem atuado em favor do “desenvolvimento”. Para tanto, tem feito uso sistemático, especialmente em São Paulo, de uma Polícia Militar cada vez mais violenta (nunca esta instituição matou tanto na última década quanto no ano de 2011!) e repressiva (espanca estudantes da USP dentro do campus). Sua organização e disciplina, subordinadas ao comando do Exército, são regidas pelas mesmas regras impostas pela Constituição outorgada pela ditadura em 1969. Com a mudança do regime de exceção para a democracia, não houve a revisão ou reforma das instituições ligadas à segurança nacional e pública, mantendo nestes setores uma ideologia agressiva com a população não proprietária e garantindo a impunidade para as violências praticadas por seus agentes.
Tal situação evidencia o modelo que os setores patrimonialistas e da elite brasileira, com a anuência da classe média e o silêncio amedrontado de uma parcela da esquerda que perdeu seus compromissos de classe, escolheram para uma democracia limitada, muitas vezes de fachada com um verniz reluzente, outras vezes com características autoritárias.
Vivemos um momento grave de nossa vida social em que precisamos refletir sobre qual democracia queremos e, mais do que isto, agir com radicalidade para denunciar um modo autoritário e manipulador de se fazer política. Conflitos como os vividos neste mês de janeiro em São Paulo demandam daqueles que se sentem ofendidos por tamanha violência uma atitude corajosa de ruptura com o modelo conciliatório da transição “lenta, gradual e segura”, sob o qual construímos o nosso Estado de Direito.
Artigo originalmente publicado no Blog da Boitempo, fevereiro de 2012.