05 outubro 2011

Os efeitos políticos do perdão em Hannah Arendt

Perdão é um termo que tem relação essencial com o tempo e com a ação. Ele é ligado a um passado que não passa, uma experiência irredutível, a algo que não existe, mas mantém-se presente. Há significações várias para o perdão, como em seu uso cotidiano, quando se pede perdão a alguém por algum incômodo causado, até seu uso mais duro, intenso, quando se pede perdão em nome de um Estado responsável por tortura e assassinato.
Considerando diferenças de ênfase na justiça ou na política, o termo perdão tem sido globalizado na cena pública contemporânea em diversas ocasiões e, inclusive, em países sem tradição religiosa cristã. Talvez o mais célebre tenha sido o da África do Sul, na passagem do apartheid para a democracia, em 1994, por ter inaugurado um novo modo de realizar as transições de saída de regimes autoritários, conhecido por justiça transicional e marcado pela existência da Comissão de Verdade e Reconciliação.
Tais acontecimentos nos levam ao questionamento sobre o estatuto do termo perdão nas democracias contemporâneas. Teria o perdão um caráter político ou sua utilização demonstra um abuso na aplicação do termo? Em outras palavras, o termo perdão tem em sua estrutura a possibilidade de ser usado na resolução de problemas coletivos e sociais ou tal fato se configura como uma ingerência de assuntos religiosos e / ou valores privados na esfera pública?
A ligação entre uma concepção plural e discursiva da política e a experimentação do uso público do perdão aparece com clareza na obra de Hannah Arendt, no livro A Condição Humana. Juntamente com o trabalho e a fabricação, a ação compõe a trilogia das atividades humanas, utilizadas pela autora para compreender as distinções entre a violência, a força e o poder. Enquanto o poder define-se pela ação política, a violência é trabalho, fabricação, dominação. A política é a ação que surge da reunião dos singulares, formando uma pluralidade de iguais, sem hierarquia alguma, e que existe somente no momento do encontro, nos debates, discursos e gestos aí encenados.
Na política, segundo Arendt, temos atores anônimos que produzem ações imprevisíveis e irreversíveis. Todo ato já iniciado é irreversível – diferentemente dos processos de fabricação e trabalho. E toda pluralidade, em sua riqueza de singularidades, é imprevisível. A política está entregue inteiramente a sua fragilidade, a qual ela somente pode ultrapassar por meio de dois recursos internos à própria ação: face às incertezas do imprevisível há o poder da promessa, que liga o ato presente a um compromisso no futuro; face ao caráter irreversível do já feito, há o poder de perdoar, que desliga o agente do evento passado e possibilita o surgimento da nova ação.
O vínculo entre política e perdão fica explícito na formulação de Arendt que vincula este ato aos processos institucionais do ordenamento: “os homens não podem perdoar aquilo que não podem punir, nem punir o que é imperdoável”. Segundo ela o perdão é o oposto à vingança; esta seria a reação natural a uma violência sofrida e, de certo modo, é esperada e pode ser até mesmo prevista e calculada. Ao contrário, o perdão jamais pode ser previsto, é a única reação que age de novo e inesperadamente.
A argumentação nos remete a duas idéias comuns ao pensamento de Hannah Arendt: na primeira, o perdão deve ser uma possibilidade humana, portanto, vinculado às relações sociais; na segunda, a faculdade humana de perdoar corresponde, em seu contrário, à possibilidade de punir.
O limite do conceito de perdão em Hannah Arendt parece encontrar-se no fato de que ao envolver um terceiro na relação entre a vítima e o ofensor – falamos do ordenamento jurídico e político – o perdão tende a perder sua capacidade de desligar o agente da política do evento passado, transformando-se em um ato de fabricação, de construção artificial de um processo que visa um produto final. Deixa de ser o livre diálogo entre seres singulares e livres.
O ser do perdão, sua ação e seu movimento, existe enquanto articulação temporal do irrecusável e irremediável passado, o passado que não cessa de passar para o sujeito vítima. Para que o perdão possa se constituir, não é suficiente a existência de um evento passado. É preciso mais. Este fato ocorrido, algo com lugar e momento diferente do perdão, deve ser mais do que algo. Ele deve conter um algo, esta coisa, objeto, que alguém fez a alguém, ou um algo que alguém mal fez a alguém, um mal envolvendo um ofensor e uma vítima. É necessário que o mal feito tenha consequências hoje, que o fato não seja impessoal e que envolva os sujeitos, os personagens do perdão.
Se o perdão em seu uso fraco, no cotidiano, é direcionado a alguém com o qual se tem certa intimidade (familiar, amorosa, comunitária), perde-se a marca do outro a quem se pede perdão; a proximidade provoca uma fusão, anulando a distância necessária para a reflexão sobre a alteridade, a ofensa e suas consequências. O perdão cotidiano caracteriza-se mais como uma etiqueta, a pequena ética de um grupo social, entre pessoas que se identificam. No perdão em sentido forte, o perdão coletivo, a implicação ocorrerá em uma série de procedimentos, instâncias e instantes nos quais o outro, aquele a quem se dirige o pedido, está a certa distância, obrigando o requerente a nomear o sujeito, a ofensa e a qualidade de sua ação. E o sujeito, o que pode ou não perdoar, envolve-se em reflexões sobre a presença do trauma passado no presente de suas ações e sobre as implicações futuras do perdoar.
O perdão envolve dois lados de um mesmo ato, o movimento do ofensor, em direção à confissão e ao arrependimento, e o da vítima, decidindo se perdoaria o ato sofrido. Quando um terceiro elemento entra na mediação entre os dois, como no caso de uma Comissão da Verdade ou em processos de reconciliação nacional após regimes autoritários, a questão se coloca fora da tradição do perdão e qualifica-se como anistia, reconciliação, indulto, ou seja, um ato político ou jurídico. A anistia em troca da confissão não deve ser confundida com o perdão, pois este deveria envolver somente dois personagens singulares: a vítima e o culpado. Toda vez que o perdão estiver a serviço de uma finalidade, como a pacificação nacional, não se estará, segundo Arendt, praticando uma ação política, mas utilizando o processo como meio para fabricar um produto final.
Temos uma série de questões para reflexão: pode-se, tem-se o direito, é conforme o senso de perdão um coletivo, o Estado, pedir perdão a outro coletivo, as vítimas, por um crime passado; a instituição política pode, em nome de outro coletivo, pedir perdão a um coletivo passado que não está mais presente – trata-se da ausência das vítimas mortas ou desaparecidas; pode pedir perdão pelo crime e não para o criminoso; há a possibilidade de o criminoso pedir perdão ao coletivo e não ao ofendido? Considerando ainda os questionamentos sobre o acordo ou não destas demandas, teremos uma ampla gama de alternativas para o uso, no sentido pragmático, do termo perdão.
Segundo Arendt, o perdão é uma experiência que não se pode ter sem os outros, sem a presença da pluralidade, jamais um ato de si consigo mesmo. Argumenta a autora que o perdão, cuja primeira formulação relacionada à esfera dos assuntos humanos foi a da religião, deve ser concedido porque o ofensor não sabe o que faz e, com base nesta idéia, defende que no caso extremo do crime e do mal intencional, como no caso dos crimes nazistas, os criminosos sabiam o que estavam fazendo e, por isso, não seriam autores de atos passíveis do perdão.

Publicado na Revista Filosofia, abril de 2011.

19 maio 2011

A apuração da verdade: grande medo das instituições militares

Militares de hoje temem pelos atos cometidos por seus pares no passado, pois pesquisas históricas comprovam que a ditadura nada teve de “branda”, afirma Edson Teles. Casos do Chile, Argentina e África do Sul servem como inspiração para o Brasil
Por: Márcia Junges
Considerada a mais violenta da América Latina pelos pesquisadores Edson Teles e Vladimir Safatle, a ditadura brasileira precisa ser mensurada não pelos desaparecidos que produziu, “mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária vivida em democracia”, acentua Teles na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Entre os inúmeros “restos” deixados por esse regime autoritário em nosso país, o maior deles é a cultura da impunidade “que privilegia a violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma cidadania plena”. Tal impunidade vale, inclusive, para aqueles que pensam que podem torturar “bandidos” e pessoas “perigosas”. Já que torturadores da ditadura não receberam a devida punição, por que alguém que tortura presos e menores infratores a receberia? Teles analisa, também, o motivo pelo qual as Forças Armadas de hoje não querem que se apurem crimes de ontem. Para ele, trata-se de uma questão de poder político: “as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi ‘branda’ e sua ação repressiva não foi fruto de um setor radicalizado dos militares”. E ressalta: “A reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares”.

Teles foi o mais jovem preso político brasileiro, com apenas dois anos de idade, quando foi detido com seus pais, César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles, bem como a irmã Janaína, na época da ditadura militar. Em 2007, junto com os pais, a irmã e sua tia, processou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para que ele fosse declarado torturador, tendo obtido ganho de causa na primeira instância.
Graduado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, escreveu a tese Brasil e África do Sul: Memória política em democracias com herança autoritária. Leciona na Universidade Federal de São Paulo e é um dos organizadores das seguintes obras: O que resta da ditadura: A exceção brasileira (São Paulo: Boitempo, 2010), Desarquivando a Ditadura: memória e justiça no Brasil (São Paulo: Hucitec, 2009) e Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985) (São Paulo: Impressa Oficial, 2009).

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O que resta da ditadura em nosso país? Qual é a pior herança deixada pelos torturadores?

Edson Teles - Há uma série de "restos" da ditadura militar. Poderíamos dizer que a maior delas encontra-se na imposição de uma cultura de impunidade, que privilegia a violência e os que detêm o poder político em detrimento da ideia de uma cidadania plena. Apesar de sairmos da ditadura com uma Assembleia Constituinte (1986-1988) e a nossa Constituição ser considerada liberal e democrática, uma série de aspectos, especialmente aqueles que se referem às estruturas jurídicas e institucionais do sistema de segurança pública e das Forças Armadas em quase nada foram alterados em relação à Constituição outorgada pelos militares em 1967. A ingerência das Forças Armadas na política brasileira e os privilégios que os militares têm indicam que a nossa Lei em democracia ainda fez a opção pela consolidação de cidadãos que são "melhores" e mais poderosos do que a maioria de nós.


IHU On-Line - Por que você e Vladimir Safatle afirmam que a ditadura brasileira foi a mais violenta da América Latina?

Edson Teles - Há um forte aspecto de violência da ditadura brasileira que é justamente sua herança. Além dos limites apontados anteriormente, há uma ação política no país cuja marca é o autoritarismo. Hoje se governa mais com decretos e medidas provisórias do que em qualquer outra época da história de nossa República, mais inclusive do que no período militar. Um bom exemplo é o desejo do Executivo atual de decidir por decreto o valor do salário mínimo. O grave problema que este tipo de instrumento jurídico implica é o descumprimento dos procedimentos democráticos de decisão sobre o futuro do país, alijando da política a grande maioria da sociedade civil.

A ideia forte que eu e Vladimir procuramos mostrar é a de uma ditadura não se mede pelo número de mortos e desaparecidos que produziu (cerca de 500 no Brasil, 20 mil na Argentina e 5 mil no Chile), mas pelo impacto que gerou no país, o que se percebe pela herança autoritária vivida em democracia.


IHU On-Line - Há uma espécie de consenso em calar, abrandar ou negar o que houve nos anos de chumbo. Qual é o papel da memória e da resistência nesse sentido?

Edson Teles - Este consenso favorece não só os setores diretamente envolvidos com a repressão política (militares e sistema policial), mas uma boa parte dos partidos e instituições políticas que obtém vantagens com a democracia nos dias atuais. Vejamos um exemplo: se os torturadores da ditadura não são punidos, qual o receio em praticar a tortura por parte de certos funcionários das antigas Febens (instituições para adolescentes infratores) ou das delegacias de polícia? Muito pequeno. Cria-se e dissemina-se uma ideia na sociedade de que a tortura é algo permitido, desde que seja para os "bandidos", pessoas "perigosas", como foram os "subversivos" de então.

Contudo, a memória não se configura como um instrumento de bloqueio da política autoritária. Ela é um significante modo de articulação das relações sociais e políticas e seu benefício está em permitir a nossa sociedade refletir sobre o que ocorreu e o que ocorre e, a partir dos debates produzidos, propiciar a criação de mecanismos democráticos de garantia de direitos e de justiça. O que quero dizer é que a memória deve ser livre, não deve ser nem um dever, nem um direito, mas ser exercida e praticada livremente em uma esfera pública democrática.


IHU On-Line - Por que as Forças Armadas de hoje temem a punição dos torturadores de ontem?

Edson Teles - Certamente boa parte dos membros das Forças Armadas de hoje não foram torturadores na ditadura. Entretanto, ainda assim, a instituição não aceita a apuração dos crimes praticados pelos generais daquela época. Isto se deve, ao que parece, principalmente a uma questão de poder político. Como já disse, as instituições militares detêm um poder abusivo em nossa democracia, garantido pela Constituição Federal, e a apuração da verdade do período ditatorial apontaria com clareza algo que já está comprovado pelas pesquisas históricas: a ditadura não foi "branda" e sua ação repressiva não foi fruto de um setor radicalizado dos militares (a chamada "linha dura). Ela foi muito bem organizada e sofisticada; a tortura e o desaparecimento serviram a uma política decidida no mais alto escalão militar. De posse desta verdade, a sociedade brasileira necessariamente terá que rever a função dos militares, ou ao menos refletir se são estas Forças Armadas que queremos para o futuro do país. A reforma institucional, fruto da apuração da verdade, é o grande medo das instituições militares.


IHU On-Line - Quais são as semelhanças e diferenças entre as democracias com heranças autoritárias do Brasil e da África do Sul?

Edson Teles - A África do Sul fez a opção pela narrativa e publicidade dos crimes do Apartheid. O Brasil escolheu o silêncio. A anistia sul-africana foi individual, caso a caso, crime a crime, e só foi concedida depois da confissão pública do ato criminoso e do esclarecimento do que foi feito com o corpo das vítimas. No Brasil, como vocês sabem, a anistia foi genérica e, simbolicamente, acabou por tornar inimputáveis os autores de crimes bárbaros praticados enquanto eram funcionários do Estado, com salários pagos pelo contribuinte e sem qualquer motivação política.


IHU On-Line - A África do Sul parece ter lidado melhor com as questões do período ditatorial do que o Brasil. A que se deve isso?

Edson Teles - Há uma série de fatores. Porém, o principal deles é a coragem e determinação dos que assumiram a construção da nova democracia multirracial. Eles sabiam que a maioria negra não iria aderir ao novo regime se não houvesse atos de justiça consistentes. No Brasil, a maior parte dos democratas, dos que vivenciaram a transição política, escolheram a composição com os antigos criminosos. Como podemos ter uma democracia plena se o presidente de um dos três poderes da República encontra-se nas mãos de um dos maiores líderes civis da ditadura, José Sarney (lembre-se que ele liderava a Arena, partido do governo militar, quando da aprovação da Lei de Anistia em 1979).


IHU On-Line - O recurso da anistia também foi usado na África do Sul? Por que essa foi a medida tomada no caso de nosso país? No caso da África do Sul a questão da ditadura foi resolvida em função de Nelson Mandela ter sido preso político e primeiro presidente eleito democraticamente?

Edson Teles - Não. O passado de alguém é muito importante na compreensão de seu presente, mas não garante que ele vá agir de algum modo determinado. Os dois primeiros presidentes eleitos de nossa democracia que terminaram o mandato foram vítimas da ditadura. Contudo, nem FHC e nem Lula tiveram a coragem (aquela que teve Mandela) de abrirem os arquivos militares e localizarem os desaparecidos políticos. Ao contrário, como dissemos, preferiram compor com os setores herdeiros da ditadura.


IHU On-Line - Nessa lógica, Dilma Rousseff, por ter sido presa política, irá dar um tratamento diferenciado às questões relacionadas à ditadura?

Edson Teles - Novamente não. É claro que conhecer tão bem quanto ela o que se passou no período abre uma chance de ouro para a nossa democracia. Mas ela sofre e sofrerá as maiores pressões para que nada se modifique. O que poderá garantir um tratamento diferenciado é a pressão política e social para que aprofundemos nossa democracia. Cito um exemplo: faz mais de 10 anos que os movimentos de direitos humanos ligados ao tema exigem uma Comissão da Verdade e da Justiça no país. Somente agora, do ano passado para cá, é que nossa democracia começou a tocar no assunto. Por que será? Certamente se deve ao fato de a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos - OEA, ter condenado o Estado brasileiro a responsabilizar penalmente os criminosos, apurar as circunstâncias dos crimes, localizar os restos mortais dos desaparecidos, entre outras medidas.


IHU On-Line - O que uma possível abertura dos arquivos da ditadura por Dilma Rousseff pode mudar em relação à memória que temos do período militar, e em relação às gerações futuras?

Edson Teles - A mudança será extrema. Veremos que o país ainda vive sob instituições autoritárias que devem ser reformadas para que a democracia e a justiça ganhem um valor maior. Poderemos, inclusive, começar a transformar a cultura de violência e impunidade, não só em relação aos crimes do passado, mas em relação à violência dos dias atuais. Há um estudo da socióloga Kathryn Sikkink , da Universidade de Minnesota (EUA), demonstrando que os países da América Latina que puniram os torturadores do passado e apuraram a verdade de suas ditaduras sofreram uma considerável redução da violência atual se comparados com os países que quase nada ou nada fizeram como o Brasil.


IHU On-Line - Como as experiências do Uruguai, Argentina, Chile e El Salvador com suas ditaduras ajudam a redesenhar o mapa dos direitos humanos e da memória na América Latina?

Edson Teles - A Argentina nos mostra que é possível e, mais do que isto, desejável, que nossas democracias apurem os crimes. Hoje, temos no banco dos réus naquele país dois ex-presidentes generais, um dos quais já condenado em outro processo à prisão perpétua, e nenhum golpe ou instabilidade foi provocado por isto.

O Chile, ao começar seus processos pela punição dos crimes de desaparecimento, levou em consideração que este é um crime de sequestro continuado, já que o corpo não foi localizado. Isto permite ao ordenamento jurídico não levar em consideração anistias como a brasileira de 1979, na medida em que estes crimes continuaram após a aprovação destas leis. No Brasil, podemos julgar e condenar os responsáveis pelos desaparecimentos mesmo sem reinterpretação da lei de anistia, como fez o Chile.

Entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 361, abril de 2011.

08 abril 2011

As heranças da ditadura no Brasil

Em agosto de 1979, o Congresso Nacional brasileiro, ainda sob a vigência do regime militar, aprovou a Lei de Anistia, que em seu texto dizia: estão anistiados “todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Na época, após 15 anos de ditadura, os militares cederam às pressões da opinião pública e a oposição aceitou a anistia proposta pelo governo, ainda que parte dos presos e perseguidos políticos não tenha sido beneficiada. Simbolicamente, foram considerados, sob a decisão de anistiar os crimes “conexos” aos crimes políticos, anistiados os agentes da repressão. Contudo, podemos dizer que não teriam sido anistiados os torturadores, pois cometeram crimes sem relação com causas políticas e recebendo salário como funcionários do Estado. Os mortos e desaparecidos políticos não foram considerados e o paradeiro de seus restos mortais nunca foi esclarecido. Era o marco da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar – e mais do que isso, silenciar – o drama vivido diante da violência estatal.
A transição começou a ser pensada e formulada pelos militares, desde o começo do governo Geisel (1974-1978), procurando construir uma abertura lenta, gradual e segura, na qual o estatuto político da nova democracia pudesse ser acordado de antemão e, principalmente, se mantivesse o controle militar do processo. Ainda em 1977, o governo impõe o Pacote de Abril, fechando o Congresso Nacional por 15 dias (entre 1º e 15 de abril) e outorgando uma série de medidas limitando as possibilidades de ruptura na abertura, entre elas: eleição indireta para governadores incorporada à Constituição; seis anos de mandato presidencial; senadores biônicos, eleitos indiretamente.
O governo manteve as medidas de abertura gradual nas ações de outubro de 1978, quando extinguiu a capacidade do presidente de fechar o Congresso Nacional e de cassar direitos políticos, devolveu o habeas corpus, suspendeu a censura prévia e aboliu a pena de morte. Logo em seguida, no mês de dezembro, é tornado extinto o AI-5. A abertura militar fundamentava-se na lógica do consenso e a anistia ainda não era considerada como parte das ações possíveis no processo lento e gradual.
Quando nos anos de 1977-78 foram montados os primeiros pacotes de reformas da abertura, falava-se no máximo em revisões de algumas penas, como a dos banidos. O estado de exceção começava a se transformar.
Figura jurídica anômala da constitucionalidade do Estado autoritário, seu produto mais discricionário no Brasil foi o Ato Institucional número 5 (AI-5). Este decreto ampliou os poderes de exceção do cargo de Presidente e extinguiu vários direitos civis e políticos (artigos 4º, 5º e 8º), especialmente o habeas corpus (artigo 10º). De fato, investiu o Estado da prerrogativa de manipulação dos corpos e, também, da vida matável dos cidadãos. O corpo passou a ser algo fundamental para a ação do regime. No caso do desaparecido político, sabe-se da existência de um corpo – desaparecido – e de uma localidade – desconhecida –, mas marcado pela ausência. Se a sala de tortura tem como resto de sua produção um corpo violado, o assassinato político produz o corpo sem vida.
O grande aumento de desaparecidos políticos a partir do AI-5 demonstra como essa peça jurídica indicava a implantação do estado de exceção como normalidade. Tendo sido o primeiro ato institucional sem data para acabar, o AI-5 foi extinto em dezembro de 1978, mas alguns de seus dispositivos foram, ao longo dos 10 anos de sua existência, inseridos na Constituição e na Lei de Segurança Nacional, ainda hoje vigente.
A violência originária de determinado contexto político, que no caso da nossa democracia seriam os traumas vividos na ditadura, mantém-se, seja nos atos de tortura ainda praticados nas delegacias, seja na suspensão dos atos de justiça contida no simbolismo da anistia. Tais atos, por terem sido silenciados nos debates da transição, delimitam um lugar inaugural de determinada política e criam valores herdados na cultura, tanto objetivamente, quanto subjetivamente – nas narrativas, nos testemunhos, nos sentimentos e paixões dos sujeitos subtraídos da razão política.
Nos aspectos sociais e nacionais, as marcas de esferas políticas originárias, como a sala de tortura e a transição consensual, se constituem como partes fundantes da democracia nascida após o fim da ditadura. O caráter maldito da tortura e o aspecto de impunidade da democracia mantêm-se na lei quando o STF decide anistiar os torturadores (maio de 2010) sem a apuração e a responsabilização de seus crimes.
A transição consensual criou uma falsa questão: punir ou perdoar?! Encontramo-nos diante do problema de como conviver com um passado doloroso em um presente democrático, administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que passadas mais de três décadas dos crimes e de vinte anos do fim da ditadura, há reclamação por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos? Ou eles podem ser perdoados em nome da reconciliação nacional?
O fato é que, independentemente da lei brasileira de anistia, o Brasil tem assinado acordos internacionais – com poder de lei para os países aderentes – que condenam os crimes contra a dignidade humana e os tornam imprescritíveis. No último dia 14 de dezembro, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) pela não localização dos corpos dos desaparecidos e por manter uma lei de auto-anistia extorquida em meio a uma ditadura e diante de um Congresso Nacional marcado por fechamentos arbitrários, cassações e bi-partidarismo.
Se alguns países latino-americanos se dedicaram à criação de novos investimentos em direitos humanos, o Brasil manteve-se como modelo de impunidade e não seguiu sequer a política da verdade histórica. Houve aqui uma grande ditadura, mas os arquivos públicos não foram abertos e as leis de reparação somente ouviram o reclamo das vítimas por meio de frios documentos; não deram direito à voz e não apuraram a verdade.
Enquanto os torturadores do passado não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência. É preciso que o país crie uma Comissão da Verdade, apure as circunstâncias dos crimes, abra os arquivos da ditadura e puna os responsáveis. Somente assim teremos como elaborar o passado e construir uma democracia respeitosa aos direitos do cidadão.

Artigo publicado no site Carta Maior, em 31 de março de 2011.

13 março 2011

Estado de exceção e violação de direitos contra adolescentes infratores

Em um país que viveu duas grandes ditaduras em sua história, o fato de as instituições autorizarem a criação de um estado de exceção permanente no trato de adolescentes infratores gera um grave precedente que fere a ideia de vivermos em um país democrático.
Edson Teles

Recentemente, uma revista semanal de circulação nacional publicou, em sua versão paulista, uma matéria de capa sobre “o duro caminho da recuperação” dos “menores infratores que vivem na Fundação Casa”, em São Paulo. Esta instituição é a herdeira da antiga FEBEM, tragicamente famosa em todo o país pelo histórico de violações de direitos dos adolescentes que para lá eram encaminhados. A matéria destaca a nova estrutura da instituição adotada após a entrada da procuradora Berenice Gianella em sua direção.

O tom adotado pelo jornalismo sensacionalista da revista enfatiza uma grave oposição entre os tempos da “violência institucionalizada” e a nova era, assumida perante o discurso legitimado por um pretenso amor materno, explícito na fala da Presidente da instituição: “(...) posso dizer que são meus filhos”. Há que se reconhecer uma série de melhorias ocorridas nos últimos anos. Talvez a maior delas seja a diminuição da violência vivida nas grandes rebeliões do fim dos anos noventa e começo dos dois mil.

Contudo, a maior barbaridade jornalística cometida refere-se ao comentário sobre o adolescente punido por crimes graves cometidos quando tinha 16 anos. Além de chamá-lo de “monstro” (estranho, pois o título da matéria é “Em busca de uma segunda chance”; uma segunda chance para um “monstro”?), os jornalistas simplificam o caso dizendo que “esse criminoso está hoje internado em uma unidade psiquiátrica do Estado” (grifo nosso).

A tal unidade, de fato, possui nome, estrutura e encontra-se em grave conflito com as leis da Constituição do nosso país. É a Unidade Experimental de Saúde (UES), criada em 2006, por iniciativa da Vara da Infância e da Juventude e da Secretaria da Saúde do Estado, com a participação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Associação Beneficiente Santa Fé. Seu objetivo inicial era o de receber adolescentes infratores diagnosticados com graves distúrbios psicológicos. Cerca de um ano depois, os dois parceiros citados abandonaram o projeto.

Há vários problemas aí envolvidos, como a própria instalação da UES indica. O quadro legal de manutenção da privação de liberdade de jovens que cometeram o ato infracional com menos de 18 anos não está previsto em nenhuma estrutura jurídica. O ECA determina que a detenção será por no máximo três anos. No caso em discussão, o adolescente cumpriu este período máximo e não recebeu sua liberdade de volta, mesmo após ter percorrido, à exaustão legal e etária, todos os procedimentos previstos pela medida socioeducativa de privação de liberdade. Não bastasse isto, o governo do Estado ainda tentou interná-lo, antes de seu encarceramento à UES, na Casa de Custódia de Taubaté, destinado a adultos infratores e com problemas psiquiátricos. Este aparato é, portanto, impossibilitado legalmente de receber alguém que cometeu ato infracional na adolescência.

Há neste quadro algumas interrogações: como é possível a contenção de um adolescente que já cumpriu a medida máxima de privação de liberdade? Diante deste quadro, qual o estatuto jurídico da Unidade Experimental de Saúde?

Responder a estas questões é tão difícil quanto o modo como o Estado tem lidado com a UES. Após a confusão inicial e não esclarecida do rompimento de contrato com a Unifesp, a administração da unidade passou a ser compartilhada entre a Secretaria da Saúde, a Secretaria de Assuntos Penitenciários e a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania (em fins de 2007). Um ano depois ela voltou a ficar sob o encargo da Secretaria da Saúde. Não se sabe ao certo se os sete adolescentes que hoje lá se encontram estão por motivo de saúde mental ou de periculosidade.

Esta confusão se dá pela própria condição jurídica do local, o qual se encontra em um verdadeiro estado de exceção. Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, o estado de exceção caracteriza-se pela suspensão do ordenamento normal em favor de uma necessidade maior, uma emergência. Nesta situação, a interrupção do direito aponta para uma íntima e perigosa relação entre o sistema de justiça e a ação ilegal do Estado, violando os direitos fundamentais do cidadão. Em um típico caso de estado de exceção, a UES encontra-se dentro e fora da lei. Dentro do aparato institucional do Estado, criada com base nas exigências da Vara da Infância e da Juventude, e fora da lei, ao não respeitar os direitos previstos no ECA e na Constituição sobre privação de liberdade para adolescentes autores de ato infracional.

De fato, o ordenamento jurídico e o Estado brasileiro rasgaram a Constituição em favor de certo apelo popular por uma demonstração de punição grave e exemplar. Em um país que viveu duas grandes ditaduras em sua história, o fato de as instituições autorizarem a criação de um estado de exceção permanente no trato desses adolescentes gera um grave precedente que fere a ideia de vivermos em um país democrático e respeitoso aos direitos de seus cidadãos.

Artigo publicado na Agência Carta Maior, em 22 de fevereiro de 2011.