12 fevereiro 2010

O sobrinho de Rameau

Quem de nós abriria mão de seu modo de vida, seus desejos, sua liberdade, sua história? Tão difícil quanto é para cada um de nós desfazer do que nos define como sujeitos, igualmente é para o “senhor filósofo” e para Jean-François, o sobrinho de Rameau, contradizerem suas experiências reflexivas. Nos diálogos d’O sobrinho de Rameau ou Sátira segunda ocorre o conflito entre duas vozes dissonantes e discordantes. Passeando entre as idéias do sobrinho de Rameau (Ele) e do Filósofo (Eu), o leitor é convidado por Denis Diderot a julgar, segundo seus próprios valores, sobre os rumos das discussões. As falas, os gestos, as ações, os percursos de cada um dos personagens indicam uma rica relação dialógica que, desde o século XVIII até os nossos dias, seduzem o leitor a imaginar e criar um debate universal, logo, filosófico. No mundo contemporâneo, os dilemas da ética se apresentam pela dissolução dos costumes e das convições tradicionais e a melhor forma de nos orientarmos em uma vida sem o auxílio de valores prévios, segundo o autor, é por meio da reflexão livre e franca, sem a definição de uma verdade única. Tal como o conhecimento é fruto das circunstâncias, da ocasião e dos indivíduos, no materialismo de Diderot também as conclusões do pensamento produzem várias “verdades”. Por isto, é de boa medida para transpor nossos dilemas, bem como para os dos personagens, o recurso ao estilo irônico da sátira, de crítica rigorosa aos hábitos e à tradição e de apresentação do novo na forma de uma miscelânea de idéias.
Segundo Laurent Versini , O sobrinho de Rameau faz parte da produção de uma trilogia satírica. Daí o sub-título Sátira segunda, indicando a existência da Sátira primeira: sobre os caracteres e as palavras caráter, profissão, etc (1775). Esta primeira sátira origina-se em uma carta enviada por Diderot, ao seu editor e amigo Naigeon, configurada como passagem e esforço inicial para a segunda sátira. Temas como a condição natural dos homens e dos animais e suas analogias; a questão hobbesiana do homem lobo do homem; a morte; a preservação da espécie, as paixões e os desejos, constituem para o autor os “gritos da natureza”. Por meio de tais gritos os homens encontrariam suas profissões, indicando um determinismo naturalista na filosofia de Diderot.
O autor ainda teria escrito um curto diálogo de nome Lui et Moi (1762) que, de modo análogo à primeira sátira, comporia a gênese de O sobrinho de Rameau. O cinismo e a malandragem do personagem Rameau já despontava e, em mais uma caracterização aos moldes do conflito natural entre os homens, como em Hobbes, Diderot relaciona Lui, o vagabundo, a um predador sem escrúpulos, em uma sociedade onde presas e predadores têm de compartilhar o mesmo espaço. A terceira sátira de Diderot seria Jacques, o fatalista e seu amo (1773). Nesta obra a imoralidade volta à tona, com o autor construindo uma série de personagens e criando as mais diversas situações, colocando à prova as morais em conflito. Expondo as questões éticas em experiências das mais desonestas e imorais, os contos contidos neste livro apresentam a virtude como exceção, em um mundo onde o imoralismo é o destaque.
Imoralidade é também uma das questões centrais de O sobrinho de Rameau e talvez por este motivo, mas provavelmente também por outros, o livro somente tenha sido publicado após a morte do autor. Para que as desavenças éticas entre o “senhor filósofo” e o Sobrinho chegasse até nós, foi preciso que o livro vivesse um romance. Ironicamente, a primeira edição não foi na França. Traduzido por Goethe e lançado na Alemanha em 1805, a primeira língua a conhecer nossos personagens foi a alemã. Mesmo para estabelecer o texto final, o autor consumiu cerca de vinte anos. Desde sua primeira aparição em 1761, em diversas ocasiões e por quase todo o restante de sua vida, Diderot manuseou e alterou o texto dos diálogos até a versão final de 1782. Sua primeira publicação na França ocorreu em 1821, em uma retradução do texto de Goethe, o que desfigurou a versão original. Por quase cem anos as versões publicadas sofriam da desconfiança quanto à fidelidade ao original. Somente em 1891, o manuscrito original foi por acaso encontrado por Georges Monval, bibliotecário da Comédie-Française, em um dos sebos parisienses. Esta cópia tem sido, desde então, a fonte de todas as outras boas edições.
Assumindo a forma do bufão da Idade Média, nosso personagem mantém-se à margem da razão, mas pertencendo a ela, atuando junto às pessoas razoáveis e transmitindo certa irracionalidade, sem o que não se faz o discurso racional. Vivendo em uma gangorra, como as estações do ano controladas por Vertumno, o Sobrinho também se vê em situações extremadas, ora compartilhando a mesa dos ricos, ora como maltrapilho. O uso da epígrafe parece simbolizar o sujeito que nasceu determinado pelo devir da natureza e que, tal como o Sobrinho, o Filósofo e os leitores, transporta-se do vício à virtude, de um extremo moral a outro, enfrentando os dilemas “baixos” ou “nobres” do campo ético. A universalidade destes conflitos e debates mostram a magnitude da cultura e dos personagens do século das Luzes que, depois e durante cerca de duzentos e cinquenta anos, têm seduzido o leitor a participar dos diálogos. O sobrinho de Rameau nos apresenta, inteligentemente, o início da sociedade moderna, na qual a virtude tem de dividir sua importância com as liberdades individuais, demandando a discussão cotidiana de nossos valores éticos.

Trecho da "Introdução", de minha autoria, do livro "O sobrinho de Rameau", de Dennis Diderot (SP: Hedra, 2006).