12 fevereiro 2010

Brasil e África do Sul: rupturas e continuidades nas transições políticas

Os regimes autoritários do hemisfério sul do planeta, nas últimas décadas do século XX, expuseram a matabilidade da vida, por vezes de modo mais sangrento, como na experiência racista do apartheid, ou mais cirúrgico, como no extermínio de considerável parcela de uma geração de “jovens heróis” nos anos de chumbo brasileiro. A vida permaneceu na esfera pública como exceção, ou seja, incluída na democracia por meio de uma exclusão: falamos dos mortos e desaparecidos políticos e dos corpos torturados. As relações entre a democracia e sua herança autoritária – os restos, interditos, fragmentos, mas também os instrumentos, procedimentos, valores – constituem, para a análise conceitual da política, um olhar aberto às novas realidades e demandas da cena pública contemporânea.
A volta às questões do passado autoritário não ocorre por mera reconstrução da memória factual da repressão, em uma simples presentificação do passado. A narrativa transforma o ocorrido em experiência e enriquece a reflexão do pensamento. Trata-se de realçar a “pulsão que se dirige ao que fomos e ao como fomos e ao que deixamos de ser e ao que e como seremos daqui em diante” (Sosnowski 1994: 15). Aquilo que menos conhecemos dos tempos de repressão, os detalhes e sentimentos, aparece em destaque na narrativa; é o plano do trivial, das pessoas comuns, aproximando-nos do incompreensível.
Tal como em um período de grave crise, quando se assiste ao desmoronamento das estruturas sociais e políticas tradicionais, também o luto social tem como característica a suspensão e a alteração das relações sociais. Nas ocasiões em que a sociedade se encontra em situação caótica ou vive sob o terror da falta de leis, seus critérios de legitimação são reavaliados e refeitos. Os momentos de luto coletivo, ou de transições de finalização de regimes violentos, correspondem a certas condições de anomia e caos, nas quais os sentimentos de dor e sofrimento são expressos por meio da cultura e suas transformações. E é justamente a perda de valores éticos e políticos uma das mais fortes heranças da impunidade sobre os crimes do passado.
Alguns países do hemisfério sul estabeleceram novas políticas com relação aos seus regimes autoritários ao procurar julgar os criminosos, mas nenhum deles ultrapassou o patamar máximo de julgamento de determinada parcela das responsabilidades, em ações limitadas diante da abrangência dos crimes. Dentre as novas experiências, destacamos as comissões de verdade encarregadas de reconstruir parte da história de violência, contribuindo com a elaboração da memória. Ao estabelecer a “verdade” dos fatos, “oferecendo um espaço público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou uma catarse partilhada” (Ricoeur 2000: 628). A narrativa da tragédia equivale à narrativa histórica, ao constituir-se na doxa do debate político e ao atingir um mínimo comum nas relações sociais, um salto qualitativo na produção de valores democráticos.