03 março 2010

Tortura, impunidade e o investimento em direitos humanos

A questão sobre a tortura pode simbolizar as lutas em favor dos direitos humanos no mundo atual. Vimos nas últimas semanas o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarar que seu país não irá mais usar o recurso da tortura na guerra contra seus inimigos. Entre suas primeiras ações deve estar o fechamento da prisão de Guantanamo, onde são mantidos mais de 200 presos acusados de “terrorismo”. Neste local, o Estado norte-americano utilizou abertamente, com respaldo em normas e leis aprovadas pelo Legislativo, a prática da tortura.
Diante de quadro tão dramático para os direitos humanos, a grande mídia mundial exalta as medidas contra as violências de Guantanamo, sem lembrar que as mesmas instituições que hoje encerram este período dolorido, ontem estavam normatizando a violação à dignidade humana como tratamento adequado a suspeitos. E, devido a esta ambiguidade do Estado norte-americano, é preciso questionar se tais medidas são suficientes para termos relações respeitosas entre as pessoas e, especialmente, entre os Estados nacionais e com todos os indivíduos que se encontram em seu território.
Colocar em dúvida as políticas institucionais para os direitos humanos é uma das principais ações necessárias para um maior investimento no respeito à vida. E não nos referimos somente aos Estados Unidos, mas a maioria das democracias contemporâneas. No Brasil, os últimos anos o tema da tortura tem ensejado intenso debate. Parte da sociedade brasileira tem refletido sobre se é possível punir os torturadores da ditadura ou se devemos perdoar os seus crimes. Ora, assim como o novo presidente norte-americano é ovacionado por sua proposta, apesar de não relacionar Guantanamo com uma política global do Estado, também no Brasil parece que discutimos o tema da tortura do regime militar sem aprofundar a discussão sobre como tal prática criminosa mantém-se como herança autoritária na democracia.
Recentemente, a organização não-governamental Human Rights Watch relacionou o Estado brasileiro, juntamente com outros tantos mundo afora, como um dos países que apresenta a tortura como um problema crônico. Aqui, a cultura nacional assimilou de tal maneira a permissividade à violação do direito à vida e à dignidade que, atualmente, mesmo os grupos criminosos torturam suas vítimas, em uma perversa repetição da prática das instituições de segurança.
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Contra a punição aos torturadores do passado há o argumento de que a retomada do assunto nos dias de hoje poderia causar algum dano às instituições democráticas. No entanto, de acordo com pesquisa realizada em 20 países - incluindo os países da América do Sul herdeiros de ditadura, como o Brasil -, pela cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, os países que julgaram e puniram os criminosos dos regimes autoritários sofrem menos abusos de direitos humanos em suas democracias. O estudo atesta que a impunidade em relação aos crimes do passado implica em incentivo a uma cultura de violência nos dias atuais. Este é um dos mais fortes motivos pelo qual assistimos frequentemente às notícias de tortura e desrespeito aos direitos em nossas delegacias, quartéis e dependências de instituições de segurança do Estado.
Entretanto, qual a relação entre o torturador da ditadura, a prisão de Guantanamo, os adolescentes infratores e os dilemas dos direitos humanos? É a constatação de que para sonharmos, desejarmos, construirmos um mundo sem tortura é necessário atacar de frente e sem medo a impunidade de tais crimes. Sem a punição aos torturadores de ontem, não há como pensar em acabar com a tortura de hoje; o simples fechamento de um notório centro de violações à humanidade será insuficiente se não houver a punição dos responsáveis (em geral, nos EUA, na FEBEM, no Estado brasileiro, os violadores permanecem em postos públicos).
A tortura simboliza uma série de desrespeitos do direito à vida, como o direito digno à alimentação, ao transporte, à educação, à saúde, a uma vida sem violência. É necessário determinar as responsabilidades e criar uma cultura de direitos. O fim da impunidade é a garantia para construirmos uma democracia respeitosa do direito à vida e à dignidade humana.

Trecho de artigo publicado na Revista ComCiência (Unicamp), n. 196, de março de 2009.