23 abril 2012
“Se não há Justiça, há escracho”
Nas últimas semanas ocorreram movimentos de escracho dos torturadores da ditadura brasileira em várias cidades brasileiras. Estas ações têm a característica de trazerem um elemento novo à luta pela justiça em relação às violações de direitos durante os governos militares: a organização e a presença das novas gerações. Alguns são familiares de vítimas da ditadura; outros, militantes de movimentos sociais ou grupos de esquerda; e, a maioria, pessoas que não viveram aqueles anos, mas que têm a consciência de que o Brasil precisa fazer justiça para que possamos viver com o mínimo de dignidade.
Os escrachos são manifestações na porta de locais de moradia ou trabalho de torturadores ou agentes da repressão já amplamente denunciados nos relatórios de familiares de mortos e desaparecidos, mas cujas histórias são pouco conhecidas pela sociedade. E esta tem sido a principal função dos escrachos, dar publicidade aos crimes criando as possibilidades para a reconstrução da memória e para a punição dos responsáveis.
Este tipo de manifestação começou na Argentina, por volta do ano de 1995, organizada pelo movimento HIJOS (sigla para o nome “Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio”, integrado essencialmente por filhos ou jovens parentes de mortos e desaparecidos políticos) para denunciar torturadores que haviam sido indultados durante o governo do presidente Carlos Menem. O alvo era o contexto de impunidade e visava a mobilização da opinião pública, bem como a condenação moral dos agentes da repressão.
Hoje, a Argentina tem 237 condenados e 778 processados. Houve uma combinação de movimentos sociais em luta, com ações judiciais internas e na Corte da OEA e a decisão política do governo dos Kirchner em apoiar, via ação da bancada do governo no Congresso Nacional, as mudanças necessárias na lei para que o Judiciário se obrigasse a julgar os crimes da ditadura.
Com o lema “Se não há justiça, há esculacho popular”, dezenas de manifestantes estiveram na porta da casa e no bairro do ex-diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Harry Shibata, quem assinou diversos laudos de morte de oposicionistas ao regime militar corroborando falsas versões, como a de suicídio do jornalista Vladimir Herzog.
Este movimento é uma lição de democracia para o país. Faz bem pouco tempo ouvíamos argumentos de que o limite do Estado brasileiro em conceder somente reparação, sem atos de justiça ou localização de corpos dos desaparecidos políticos, devia-se às pressões de setores conservadores e perigosos dentro do cenário político brasileiro. Este argumento do “medo”, fantasmagórico de um perigo invisível, forçaria o governo a adotar uma política do possível. Assim, a luta pela justiça e pela memória limitava-se, no Brasil, ao discurso do direito à memória e à verdade. Foi dentro desta lógica que o Congresso Nacional aprovou o tímido projeto do governo de criação da Comissão da Verdade.
Contudo, em vez de se configurar como uma ação somente de resgate histórico do passado, as movimentações para a criação da Comissão da Verdade colocaram em evidência uma das maiores chagas de nossa democracia: a impunidade. Temos uma boa chance de mudar o cenário cotidiano de nosso Estado de Direito. Anunciar uma lista de nomes qualificados para a Comissão da Verdade e indicar à base governista o apreço pelo projeto da deputada Luiza Erundina de reinterpretação da Lei da Anistia pode nos levar a um país diferente.
Por outro lado, o ensinamento democrático dos movimentos de escracho é que o que devemos temer é a ausência de Justiça e a falta de coragem de agir em defesa de uma democracia não tutelada por “forças invisíveis”, sempre prontas a reagir quando os movimentos sociais se mobilizam. Isto nos mostra que a ação política não se decide somente em Brasília ou nas decisões partidárias, mas tem um forte elemento na organização dos movimentos sociais.
Publicado no Blog da Boitempo, dia 19 de abril de 2012